A inviolabilidade do domicílio e o direito à resistência - Ministro Marco Aurélio Mello
Apreciando o Recurso Extraordinário nº 460.880-4/RS, o Supremo foi chamado a analisar a extensão da proteção constitucional conferida ao domicílio. O quadro fático apresentava oficial de justiça que, portando mandado em que constava autorização expressa para cumprimento em domingo ou em dia útil, nos termos do § 2º do artigo 172 do Código de Processo Civil, tentara entrar na residência do réu, contra a vontade deste, em um sábado, durante o repouso noturno, para intimar a mulher cônjuge , que estava enferma.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, reformando sentença em que absolvido o réu por inexigibilidade de conduta diversa, condenara-o pelo crime de resistência, consignando que não poderia desacatar o oficial de justiça, fazendo-o mediante violência. Com embargos de declaração, havia-se buscado a manifestação da Corte de origem quanto à garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio.
Os declaratórios foram desprovidos, assentando-se ter constado no mandado, com fundamento no mencionado artigo da lei processual, autorização para cumprimento em horário especial.
Iniciei a abordagem do tema salientando que o Tribunal colocara em plano secundário a defesa do próprio domicílio e, portanto, o esforço a configurar a inexigibilidade de conduta diversa. Buscou o oficial cumprir o mandado de intimação no sábado à noite, apesar de acerto para fazê-lo em dia útil anteriormente entabulado. Então, houve a resistência no espaço do próprio domicílio.
Considerei caracterizada a ofensa ao dispositivo da Carta que versa a inviolabilidade noturna do domicílio, pouco importando a existência de ordem judicial. É em relação a esta última mesmo que ocorre a limitação constitucional. O inciso XI do artigo 5º do Diploma Maior preceitua ser a casa asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
Com base nessa óptica, conheci e provi o extraordinário para reformar o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e restabelecer o entendimento sufragado na sentença a inexigibilidade de conduta diversa. Fui acompanhado no voto proferido, à unanimidade, pelos demais integrantes da Primeira Turma do Supremo.
Em síntese, prevaleceu a disciplina constitucional em detrimento do que previsto no Código de Processo Civil e determinado pelo Juízo. A atuação judicante é vinculada. Faz-se a partir do Direito posto e, no ápice da pirâmide das normas jurídicas, está a Carta da República, que a todos, indistintamente, submete.
Consubstancia garantia constitucional a inviolabilidade da casa. O afastamento pressupõe o enquadramento da situação em uma das exceções contempladas, sendo de sabença geral que a única interpretação possível de legislação que as encerre é a estrita.
Diante da clareza vernacular do preceito constitucional, somente durante o dia poderia haver o implemento da ordem judicial de intimação. A resistência do cidadão, inobservado o período definido, mostrou-se republicana, servindo, até mesmo, como fator a inibir a força pela força. Avança-se culturalmente respeitando-se as regras estabelecidas. Em Direito, o meio justifica o fim, mas não este, aquele. Novamente, o Supremo atuou revelando que os cidadãos devem tê-lo como uma derradeira trincheira.
Marco Aurélio Mello
Ministro do Supremo Tribunal Federal, presidente do Tribunal Superior Eleitoral e membro do Instituto Metropolitano de Altos Estudos (Imae)
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