O GLOBO - PAÍS - 30.3.13
Cartórios privados omitem faturamento bilionário
Só faltou aperto de mão no ato de transferência de uma área de 350 hectares em Baixa Grande do Ribeiro, cerrado piauiense, que passou do governo estadual para o lavrador D. dos S. L., em junho de 2010. Por uma razão justificável, D. não apareceu para assinar o termo. Embora tenha até assinado procuração, cinco meses depois, dando poderes a um representante para vender a mesma terra, ele não era lavrador e nem vivo estava. Acusado de assaltar bancos, havia morrido em maio daquele ano, aos 24 anos, em troca de tiros com a polícia.
A fraude, descoberta recentemente, expõe a fragilidade de uma rede de serviços da qual todos precisam, mas poucos conhecem: os cartórios extrajudiciais ou privados do país. Para validar a procuração, o cartório do 2º Ofício da comarca de Ribeiro Gonçalves (567 quilômetros de Teresina) deu fé à identidade e à capacidade jurídica do falecido. A única serventia do documento com a falsa assinatura de Deusdete e selo oficial foi alimentar a indústria da grilagem que infesta as terras produtivas do Brasil.
O 2º Ofício de Ribeiro Gonçalves é um dos 13.355 cartórios privados brasileiros. E a procuração do lavrador não é um caso isolado. Protegidos por uma espécie de fortaleza corporativa, que produz toneladas de papéis carimbados mas pouco diz de si, esses cartórios prestam um serviço caro, burocratizado, lento e permeável a fraudes. Não divulgam faturamento, não mostram a movimentação diária de seus livros, alegando privacidade. Só no estado do Rio, faturaram no ano passado R$ 884 milhões. Em São Paulo, R$ 4 bilhões, o correspondente a toda a renda dos cartórios privados em 2006. São também desiguais, cabendo no mesmo estado um cartório que arrecada R$ 2 milhões mensais e outro de lucro zero.
Os cartórios extrajudiciais não fazem parte do Judiciário, mas são fiscalizados por ele. Existem para oferecer a segurança jurídica, colando selos em informações que se presume verdadeiras. Cabe ao tabelião atestar, por exemplo, que o dono é o dono. E isso é bem cobrado. Os titulares dos cartórios de Registro Civil, tabelionatos de Protestos, ofícios de Notas e de Registro Imobiliário recebem a maior fatia dos emolumentos (custas) que os cidadãos pagam pelo serviço prestado.
Tabelas generosas com tabeliães
As tabelas de custas e emolumentos dos cartórios extrajudiciais, definidas pelos Tribunais de Justiça e aprovadas pelas Assembleias Legislativas, têm sido generosas com os tabeliães. Em São Paulo, por exemplo, subiram 30% em três anos. No Rio, com 490 serviços extrajudiciais, foram dois reajustes em três meses, o primeiro em janeiro e o segundo no dia 21 de março, chegando a uma diferença de até 30% em certidões de execução fiscal. O registro de um imóvel avaliado em R$ 400 mil, que há duas semanas ficava em torno R$ 1,2 mil, ultrapassa agora a casa dos R$ 2 mil.
Esses patamares começam a criar uma legião de excluídos dos serviços cartoriais. O comerciário L. C. B. de O. N., de 46 anos, não consegue limpar o nome na praça, razão pela qual está impedido de usar cheques e cartões de crédito, embora tenha resgatado dois cheques sem cobertura, emitidos em 2003, ambos no valor de R$ 48,60. Ele alega não ter dinheiro para levantar o protesto em dois tabelionatos do Rio, 2º e 4º Ofícios de Protesto de Títulos, que lhe cobraram, cada um, custas de R$ 210,56.
Isso é um absurdo. Os cartórios estão cobrando quatro vezes mais do que o valor dos cheques que assinei. Como não tenho como pagar, vou continuar com o nome sujo.
Na composição do valor do emolumento, os cartórios informaram a L. C. que a taxa básica para levantar o protesto é de R$ 15,44. Porém, três leis e outras cobranças adicionais elevaram o valor para R$ 210,56. O resultado financeiro dessas cobranças é um mistério. Em Minas, por exemplo, uma portaria de 2005 veda o repasse de informações sobre esses valores a terceiros. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e os tribunais estaduais alegam que estão impedidos legalmente de fornecer os dados.
Geralmente, os tribunais recolhem percentuais sobre a arrecadação para subsidiar fiscalização de serviços notariais e de registros ou compor fundos de compensação para cartórios deficitários. Quando o percentual de repasse é fixo, é possível fazer uma conta e chegar ao total arrecado. No Ceará, os extrajudiciais faturaram no ano passado R$ 444 milhões. No Pará, R$ 154 milhões. Rio Grande do Sul e Goiás só informaram o total repassado pelos cartórios aos fundos: R$ 37 milhões e R$ 74 milhões, respectivamente.
Outro foco de resistência é o cartório biônico. Desde 2006, o CNJ exige que os cartórios sejam geridos por oficiais concursados, de acordo com a regra prevista na Constituição de 1988. Porém, o país tem 2.209 cartórios chefiados por interventores ou interinos (16,5% do total), dos quais 260 mantêm os seus titulares por força de liminar. Está tramitando uma proposta de emenda constitucional (PEC) que busca legitimar a situação dos provisórios, a maioria deles de parentes que herdaram irregularmente esta titularidade e se beneficiarão desse trem da alegria.
Os cartórios mais cobiçados são os de notas (8.147 oficios no país), de protestos de títulos (3.427) e de registro de imóveis (3.396). São também os mais afetados pelos escândalos. Nas cidades, as fraudes mais frequentes são falsificações de assinaturas para DUTs e para efetivar transações imobiliárias. Nas fronteiras agrícolas, o registro ilegal de terras. Na cidade paraense de Altamira, por exemplo, um cartório reconheceu a regularidade de um território que correspondia à metade do Brasil, mais as Guianas e parte da Venezuela: a Fazenda Curuá, talvez uma das maiores propriedades rurais do mundo que só deixou de existir legalmente depois que a Justiça Federal de Belém mandou cancelar o registro imobiliário.
Cartórios dizem que problemas são pontuais e defendem modelo
O presidente da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg BR), Rogério Bacellar, disse que ocorrências de fraudes em cartórios são pontuais e atingem todos os segmentos da sociedade, sejam serviços públicos e privados assim como profissões diversas. Ele defende que os responsáveis por ações criminosas ou em desacordo com a ética e a legislação sejam investigados e devidamente punidos.
países do mundo, como China e Rússia. Nas próximas semanas estaremos inclusive participando em Washington de reunião na OEA para implantação do modelo brasileiro no Haiti.
Bacellar reconheceu que os cartórios não divulgam os dados referentes ao faturamento, por serem protegidos por sigilo fiscal, mas assegura que os demais dados armazenados nos cartórios são públicos, podendo ser solicitados por qualquer cidadão, exceto para os casos de sigilo previstos em lei (como Direito de Família):
Reitero que os cartórios repassam mensalmente estas informações para as corregedorias dos Tribunais de Justiça dos estados, que informam ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), assim como para a Receita Federal. Para efeito público, periodicamente essas entidades divulgam as informações sobre o faturamento geral dos ofícios preservando o sigilo constitucional.
O presidente da Anoreg BR defendeu as custas cobradas pelos cartórios. Ele alega que considera os valores corretos porque garantem operações comerciais e cidadania para todos os brasileiros. Além disso, ele sustenta que os cartórios oferecem uma série de serviços gratuitos como certidão de nascimento, óbito, casamento coletivo, e repassam uma série de dados ao governo federal que permitem o desenvolvimento de políticas e planejamento de ações em benefício de toda a sociedade.
Piauí: porta para a grilagem
Ele garantiu que a Anoreg é favorável ao concurso público para o preenchimento de vagas nos cartórios e que estimula a informatização de todos os ofícios brasileiros, experiência já oferecida à população dos grandes centros urbanos.
Já o governador do Piauí, Wilson Martins (PSB), disse que o uso de nomes de mortos para fraudar documentos é, teoricamente, como se dá a grilagem. Wilson Martins afirmou que o governo do estado tem atuado em parceria com a Corregedoria Geral de Justiça do Piauí para fazer a regularização das terras, e para acabar com a grilagem e com a insegurança.
Segundo ele, o Tribunal de Justiça tem mais condições de fazer pesquisa junto aos cartórios de registro de imóveis para que sejam resolvidas as disputas entre os proprietários de terras no Piauí. Wilson Martins declarou também que o governo do estado está dando condições à Corregedoria Geral de Justiça, fornecendo GPS para o georreferenciamento das terras públicas estaduais e objeto de litígio:
Essa aliança agiliza a regularização de terras e combate a insegurança e a violência para que o Piauí desenvolva mais rápido, principalmente nas regiões de Cerrado, onde as denúncias de grilagem são mais fortes.
No Rio, a Corregedoria de Justiça informou que os cartórios são obrigados a prestar contas ao TJ a cada seis meses. Isso porque 20% de cada emolumento cobrado é destinado ao Fundo Especial do Tribunal de Justiça. O controle é feito pelos selos, encomendados a uma empresa contratada pelo tribunal. A fiscalização da arrecadação cabe ao Degar, órgão ligado à Presidência do TJ. O delegatório tem a obrigação de transmitir o número do selo, que é disponibilizado no link Do selo ao ato. Qualquer pessoa pode identificar o ato digitando o selo.
Entre 2010 e 2012, houve uma delimitação geográfica dos serviços de registros de imóveis e de registros civis de pessoas naturais, que eram anacrônicos, e foram reorganizados com a orientação do professor José Pessoa, historiador, que passou para o mapa os limites. O TJ também ouviu registradores e entidades.
Chico Otavio
(Colaborou Éfrem Ribeiro)
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