Receita autua uso do ágio em aquisições
Marta Watanabe
Em 2000, o grupo Carrefour efetivou a compra da Rainha Dallas Continente, rede de supermercados com 38 lojas do Rio de Janeiro. A aquisição, na época por US$ 381 milhões, foi feita por meio da controladora do grupo francês no Brasil, a Brepa Comércio e Participação Ltda.
Boa parte do valor pago foi justificado como ágio em razão de rentabilidade futura, de acordo com previsão da lei federal que dois anos antes viabilizou a privatização do sistema Telebrás. A lei facilitou a vida dos compradores das teles ao permitir que esse ágio pudesse ser deduzido na hora de calcular os 34% de Imposto de Renda (IR) e de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
Embora idealizada em função da privatização nas telecomunicações, o dispositivo da Lei nº 9.532/97 que permite a dedução do ágio no IR ainda vigora e foi aproveitado nas aquisições que aumentaram desde então. Inclusive pelo Carrefour na compra da rede carioca. Em 2002, o grupo resolveu aproveitar o ágio para fazer a dedução no IR devido.
A Receita Federal, porém, autuou a RDC Foccar Factoring Fomento Comercial, empresa do grupo Carrefour por meio da qual a rede francesa aproveitou o ágio originado da compra da Rainha Dallas. A fiscalização alegou que, com o uso do ágio, a empresa pagou IR sobre R$ 5,8 milhões. O ganho total a ser tributado, segundo o Fisco, seria de R$ 433,63 milhões.
Além de revelar o quanto o ágio por rentabilidade futura amenizou o IR das empresas compradoras, a autuação mostra que a Receita passou a olhar as grandes aquisições dos últimos anos de forma diferente. Por muito tempo a fiscalizou concentrou-se nas operações societárias implementadas para reduzir o ganho de capital obtido por quem vendia a empresa. Hoje o Fisco tem também como alvo a outra ponta: a de quem compra.
E na ponta do comprador a fiscalização vem autuando o uso da dedução do "ágio por rentabilidade futura" no cálculo do IR e da CSLL. Este benefício fiscal, por ser previsto expressamente em lei, demorou para ser alvo de questionamento do Fisco. A Receita, porém, tem verificado detidamente o modo como o benefício foi aproveitado. "Tudo indica que isso vai começar a ser mais investigado", diz Tiago Medalha, do Felsberg Advogados.
A Coinbra Frutesp, que usou esse ágio de rentabilidade futura ao incorporar seu controlador no Brasil, a Louis Dreyfus Citrus - uma das maiores tradings do mundo - também teve sua operação autuada. O grupo aproveitou um total de US$ 174 milhões em ágio. Desse valor, porém, segundo o Conselho, somente US$ 123,88 milhões se referem a ágio por rentabilidade futura.
O advogado Gustavo Haddad, do Lefosse Advogados, explica que há vários tipos de ágio. E nem todo ágio permite a dedução do IR e da CSLL. Para o ágio por rentabilidade futura, é permitida a dedução por um período de cinco anos, à parcela de 1/60 do valor do ágio ao mês. Essa vantagem fiscal, porém, não se aplica ao ágio fundamentado por outras razões, como fundo de comércio e intangíveis, por exem-plo. A natureza do ágio deve ser estabelecida em laudo.
Até o ágio originado na alienação do sistema Telebras em 1998 foi fiscalizado. É o caso da Tele Norte Leste, cuja autuação em valores atualizados chega a R$ 1,88 bilhão. No caso da holding, o Fisco também questionou a operação societária com base na qual foi aproveitado o ágio. O caso da companhia ainda não teve decisão de mérito do Conselho. A holding telefônica chegou a ter uma decisão administrativa de primeira instância que reduzia a autuação em R$ 300 milhões. Esse primeiro julgamento, porém, foi anulado pelo Conselho, o que fez o processo retornar à primeira instância.
Os tributaristas lembram que o IR devido por quem vende a empresa prescreve cinco anos após a operação. Do lado comprador, não. Somente quando o ágio começa a ser utilizado. E a dedução do ágio é feita após uma fusão, cisão ou incorporação da empresa que contabilizou o ágio, o que não costuma acontecer imediatamente. E a prescrição acontece a conta-gotas, no prazo de cinco anos para cada pedaço de ágio utilizado para reduzir o IR e a CSLL. "Isso também pode explicar por que a parte compradora começou a ser fiscalizada somente agora", diz o advogado Luís Alexandre Barbosa, do Feslberg.
As primeiras autuações sobre o assunto que chegaram ao Conselho estão provocando alvoroço entre os tributaristas que acompanham o assunto. Uma das decisões mais polêmicas é a da RDC Foccar, do grupo Carrefour.
O aproveitamento do ágio dentro do grupo Carrefour aconteceu após uma série de operações societárias entre as empresas do conglomerado. A rede de supermercados Rainha Dallas Continente foi adquirida pela controladora do Carrefour no Brasil, a Brepa Comércio e Participação, que pagou ágio na compra. O investimento dela na RDC foi transferido a uma outra empresa, a Rivierepar, por meio de subscrição de capital. Depois, a RDC incorpora a Rivierepar. A última operação transferiu o ágio para a RDC, a empresa originalmente adquirida. O ágio passou a ser aproveitado quando a RDC vendeu os estabelecimentos ao Carrefour.
Os conselheiros concluíram que a Rivierepar era apenas uma "empresa veículo" criada para tornar a dedução do ágio viável na venda dos estabelecimentos ao Carrefour. Não teria havido, portanto, propósito negocial ou societário.
O advogado Luís Rogério Farinelli discorda da decisão do Conselho. Para ele, não deve haver avaliação de propósito negocial ou societário no uso do ágio por rentabilidade futura. "Não se trata de uma operação montada pela empresa. O uso do ágio é apenas a aplicação de um direito previsto em lei", argumenta. Ele lembra, porém, que o caso do grupo Carrefour não deve ser, necessariamente, um parâmetro. "As análises devem ser caso a caso."
Procurados, o Carrefour e a Tele Norte Leste preferiram não se manifestar. A Louis Dreyfus informou que não comenta casos que estão sob julgamento.
Fonte:
Valor Online
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