Territórios quilombolas e imunidade do ITR
11 de abril de 2014
Em manifestação de 13 de maio de 2013 (Parecer PGFN/CAT/Nº 896/2013, aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda), a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) exarou posicionamento no sentido de que a titulação coletiva das terras de remanescentes das comunidades de quilombos é compatível com a imunidade explícita do art 153, § 4º, II da Constituição Federal, relativa ao Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural. O presente artigo resume a tese veiculada no opinativo da PGFN.
O art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, alude a direitos territoriais, à obrigação do Estado em conferir aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras a propriedade definitiva, com a emissão do título respectivo. Como a propriedade é fato gerador do ITR, à primeira vista, então, as terras tituladas a essas comunidades constituem fato gerador do imposto. Mas não nos parece que seja essa exegese que melhor se coaduna ao tipo de propriedade em evidência.
De acordo com o Decreto nº 4.887, de 2003, a titulação dessas áreas é feita em nome das associações legalmente constituídas e a propriedade é exercida em comum, sob a égide de quotas ideais. Eis que a dominialidade sob a ótica do Código Civil não é suficiente para definir ou nortear a questão da propriedade dos remanescentes das comunidades de quilombos.
Não é razoável que sofra incidência do ITR se, dividida a área total, as glebas de cada família se mantiverem no conceito de pequena propriedade
Dessa forma, é preciso conciliar as disposições dos arts. 68 do ADCT, 215, § 1º e 216, § 5º da CF, bem como o art. 153, § 4º, II, também da Carta Maior. Este último dispositivo estabelece que o imposto não incidirá sobre pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando as explore o proprietário que não possua outro imóvel. A definição de pequenas glebas rurais está no art. 2º da Lei nº 9.393, de 1996.
Não se mostra razoável que por ser titulada de forma coletiva a propriedade dos remanescentes das comunidades de quilombos deva sofrer a incidência do ITR se, hipoteticamente dividida a área total, as glebas de cada família se mantiverem dentro do conceito de pequena propriedade.
Não se trata, pois, de reconhecimento de imunidade implícita, mas de dar efetividade à imunidade prevista no art. 153, § 4º, II da CF a grupo de pessoas que por características próprias e particulares lidam com a terra de uma maneira que escapa aos liames da propriedade privada por nós conhecida, usual.
Desconsiderar tais elementos implicaria sacrificar direitos importantes não apenas para as populações quilombolas, mas para toda a sociedade, uma vez que a proteção daqueles enquanto grupo dotado de cultura e valores próprios, essenciais à formação social do país, e o reconhecimento de seus direitos, também se dá em proveito destes.
A aplicação da imunidade versada no art. 153, § 4º, II da CF, aos territórios quilombolas também prestigia o princípio da capacidade contributiva, uma vez que segundo números apresentados pela SEPPIR-PR (documento “Programa Brasil Quilombola – Diagnóstico de Ações realizadas – março de 2013?), em janeiro de 2013, constam 80 mil famílias de quilombolas cadastradas no Cadúnico, das quais 74,73% estão em situação de extrema pobreza, cenário que fala por si.
De outro giro, vê-se que a forma de titulação determinada pelo Decreto nº 4.887, de 2003, mediante a outorga de título coletivo e pró-indiviso às comunidades quilombolas, inclusive com obrigatória inserção de cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade, colide com a tributação de tais áreas pelo ITR em razão justamente dessa titulação coletiva. Não é razoável o Estado determinar que a titulação dessas áreas deva ser coletiva, e esse mesmo Estado tributar em função dessa figura jurídica por ele instituída.
Em conclusão, os arts. 68 do ADCT, 215, 216 e 153, § 4º, II da CF devem ser analisados conjunta e harmonicamente, de forma que se dê a máxima efetividade a tais normas constitucionais, evitando-se ceifar alguma em detrimento da outra.
A operacionalização da solução jurídica externada, a qual, acredita-se, tem potencial para contribuir com a diminuição das atuais tensões existentes relativamente à tributação dos territórios quilombolas pelo ITR, a teor do vertido no Parecer PGFN/CAT/Nº 896/2013, compete à Secretaria da Receita Federal do Brasil, a quem cabe a administração do ITR, em conjunto com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Incra, órgão competente para a demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades de quilombos.
Núbia Nette Alves Oliveira de Castilhos é procuradora da Fazenda Nacional
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
Valor Econômico
|