Tributação, dívida e gasto sem medida
14 de maio de 2014
Tributação recorde no primeiro trimestre. Dívida pública ascendente em março. Postergação de desembolsos para fechar as contas. Esta é a situação enfrentada pela cidadania fiscal no Brasil.
A Constituição determina a preferência pela tributação pessoal e “graduada pela capacidade econômica do contribuinte”, vedado o “efeito de confisco” tributário. Não é o que se vê na prática: a carga tributária indireta fere fundo, e regressivamente, o consumo das famílias; o imposto de renda isenta os dividendos e outros rendimentos de capital, enquanto agride os assalariados com descontos pífios inclusive para dependentes e instrução – tudo na contramão do parágrafo 1º do art. 145 e do inciso IV do art. 150, IV, da Carta Magna.
O Estado gasta mais do que arrecada; paga juros cada vez mais altos pela dívida pública que aumenta exponencialmente em razão do crescimento desmesurado da despesa, contrariando o “princípio da eficiência” (art. 37) e expondo a indigência do planejamento (que se requer “determinante para o setor público” – art. 174).
O Judiciário tem sido provocado a fazer cumprir as leis, sem que nisso possa ser criticado por pseudo ativismo judicial
Os investimentos em políticas públicas de atenção aos direitos humanos e de fomento à produção são relativizados em comparação aos estímulos seletivos ao consumo e aos incentivos fiscais setoriais sem critérios transparentes, sem retorno comprovado dos seus resultados. O princípio da economicidade (art. 70) não parece observado, malgrado repetidos alertas dos Tribunais de Contas.
O quadro é, pois, de desrespeito ao direito financeiro e à economia popular por ele tutelada. E pode mascarar ofensas profundas ao Estado de Direito.
É que sem democracia fiscal não há democracia política nem econômica nem social.
O controle do poder financeiro do Estado está na origem do modo republicano de governar. E o desrespeito a essa determinação histórica da civilização configura uma violência de governo à vontade do povo, já que este deve ser o destinatário e beneficiário final de toda ação daquele (art. 1º e parágrafo único). Não por coincidência a Constituição considera crimes de responsabilidade os atos dos governantes atentatórios aos direitos políticos, individuais e sociais, à segurança interna e à lei orçamentária, entre outros (art. 85).
Atentado à liberdade de consciência ao votar, do eleitor e do eleitorado; menoscabo à integridade física e patrimonial das pessoas e das empresas; descaso quanto à saúde e à educação; negligência com a paz pública; insinceridade contábil: tudo isso são males de que padece o país em que, em última análise, não se prioriza com recursos financeiros e com eficaz gestão orçamentária a implementação de políticas públicas para satisfação do bem comum.
O Poder Judiciário tem sido provocado a cumprir sua missão institucional, ordinária, de guardar a Constituição e fazer cumprir as leis, sem que nisso possa ser criticado por pseudo ativismo judicial, já que age na omissão ou na condução ilegítima, irresponsável da coisa pública pelos demais poderes: consultem-se os julgados do STF na STA 175 (negativa de fornecimento de medicamento), no RE 581352 (desatenção à saúde materno-infantil), no RE 594018-AgR (carência de professores no ensino público), no RE 559646 (direito à segurança pública), entre outros, em que se cita recorrentemente o julgamento da ADPF 45: a implementação dos direitos sociais depende de um “vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado”, não sendo lícito ao poder público “criar obstáculo artificial que revele, a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa, o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.
A expansão do gasto público e da dívida pública, seguida de contínuo incremento da carga tributária mal repartida e sem retorno em serviços públicos de qualidade aos cidadãos contribuintes revela a um só tempo déficit de planejamento, de gestão e de democracia no país, tudo a partir do tangenciamento dos princípios e regras do direito financeiro. Tais normas traduzem conquistas da humanidade cuja dignidade deve ser garantida pelo Estado de Direito.
O uso desproporcional ou distorcido do poder financeiro pelos governos, distanciando-se do dever de agirem “pelo povo” e “para o povo”, já que “do povo” são (Lincoln), pode desencadear o recurso legítimo ao direito político de resistência (Suarez) sem prejuízo do processo constitucional previsto para punir ofensas capitais ao Texto Fundamental. Ainda que traumáticos, os exemplos estão na história.
José Marcos Domingues
Valor Econômico
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