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Quinta-feira, 29 de maio de 2014
STF considera inconstitucional exigência de garantia para impressão de documentos fiscais
Por decisão unânime, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) deram provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 565048 e julgaram inconstitucional norma do Estado do Rio Grande do Sul que, em razão da existência de débitos tributários, exigia do contribuinte a prestação de garantia para impressão de documentos fiscais. A matéria tem repercussão geral reconhecida.
A empresa MAXPOL – Industrial de Alimentos Ltda, autora do RE, questionava acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) que deu parcial provimento à apelação interposta pelo governo gaúcho. O TJ-RS assentou que o Fisco, com base em reiterada inadimplência e débito que ultrapasse o capital social, pode condicionar a autorização para imprimir documentos fiscais “à prestação de garantia real ou fidejussória, conforme escolha da devedora, a fim de cobrir operações futuras decorrentes da autorização, cujo valor é estimado segundo o volume de operações dos últimos seis meses”.
Conforme o acórdão questionado, a empresa possui débito de aproximadamente R$ 51 mil, valor superior ao capital social de R$ 30 mil. Para o tribunal de origem, essa diferença representa desequilíbrio e indica a prática de o contribuinte utilizar nota fiscal como instrumento de captação do dinheiro público. Assim, o TJ reconheceu a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 42 da Lei estadual 8.820/1989, que submete o contribuinte, quando em débito, a garantias reais ou fidejussórias para obter autorização de impressão de talonário de notas fiscais.
Na origem, a empresa impetrou um mandado de segurança contra ato do diretor do Departamento da Receita Pública Estadual com o objetivo de obter autorização para impressão de documentos fiscais. A empresa alegava ofensa ao artigo 5º, incisos XIII, XXXV, LIV e LV, e artigo 170, da Constituição Federal e sustentava que a imposição de tal exigência configura indevida obstrução no exercício da atividade econômica.
Relator
O relator do recurso, ministro Marco Aurélio, afirmou ser contrário à coerção para o pagamento de débito tributário. Para ele, a Fazenda deve buscar o Poder Judiciário visando à cobrança da dívida, via execução fiscal, “mostrando-se impertinente recorrer a métodos que acabem inviabilizando a própria atividade econômica, como é o relativo à proibição de as empresas, em débito no tocante a obrigações – principal e acessórias –, vir a emitir documentos considerados como incluídos no gênero fiscal”.
O relator frisou que a lei contestada permite que a administração pública condicione a autorização de impressão de notas fiscais, em caso de contribuinte devedor do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), a prestação de fiança, garantia real ou fidejussória, equivalente ao débito estimado do tributo relativo ao período subsequente de seis meses de operações mercantis presumidas. “Em outras palavras, o sujeito passivo é obrigado a apresentar garantia em virtude de débitos passados, mas calculada tendo em conta débitos futuros, incertos quanto à ocorrência e ao montante”, ressaltou.
Segundo o ministro, essas normas vinculam a continuidade da atividade econômica do contribuinte ao oferecimento de garantias ou ao pagamento prévio da dívida. “Ante a impossibilidade de impressão de notas fiscais, o contribuinte encontra-se coagido a quitar pendência sem mais poder questionar o passivo, sob pena de encerrar as atividades”, salientou, ao acrescentar que “se trata de providência restritiva de direito, complicadora ou mesmo impeditiva, da atividade empresarial para forçá-lo a adimplir”.
Para o ministro Marco Aurélio, o Estado não pode privar o cidadão “do meio idôneo estabelecido no arcabouço normativo e informado pelo princípio da ampla defesa, o executivo fiscal, para utilizar em substituição a mecanismos indiretos mais opressivos de cobrança de tributos”. Atuando dessa forma, prossegue o ministro, o Estado desrespeita o devido processo legal, “tanto na dimensão processual quanto na substancial”.
Por fim, o ministro avaliou que cabe ao Supremo afastar restrições excessivas e abusivas, apenas toleráveis em um contexto ditatorial. De acordo com ele, não há dúvida de que o preceito questionado contraria os dispositivos constitucionais evocados, ou seja, a garantia do livre exercício do trabalho, ofício ou profissão e de qualquer atividade econômica, assim como o devido processo legal. O relator citou, como precedente, o RE 413782.
Dessa forma, o ministro Marco Aurélio deu provimento ao recurso para deferir a solicitação, assegurando o direito da empresa à obtenção de autorização para impressão de talonários de notas fiscais, independentemente de prestação de fiança, garantia real ou outra fidejussória. Ele declarou a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 42 da Lei 8.820/1989, do Estado do Rio Grande do Sul.
EC/AD
Processos relacionados
RE 565048
VOTO DO MINISTRO MARCO AURÉLIO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 565.048 RIO GRANDE DO SUL
RELATOR :MIN. MARCO AURÉLIO
RECTE.(S) :MAXPOL - INDUSTRIAL DE ALIMENTOS LTDA
ADV.(A/S) :MATEUS FETTER DE ALMEIDA
RECDO.(A/S) :ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PROC.(A/S)(ES) :PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL
TRIBUTO – ARRECADAÇÃO – SANÇÃO POLÍTICA. Discrepa, a
mais não poder, da Carta Federal a sanção política objetivando a cobrança
de tributos – Verbetes nº 70, 323 e 547 da Súmula do Supremo.
TRIBUTO – DÉBITO – NOTAS FISCAIS – CAUÇÃO – SANÇÃO
POLÍTICA – IMPROPRIEDADE. Consubstancia sanção política visando o
recolhimento de tributo condicionar a expedição de notas fiscais a fiança,
garantia real ou fidejussória por parte do contribuinte.
Inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 42 da Lei nº 8.820/89,
do Estado do Rio Grande do Sul.
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RECURSO EXTRAORDINÁRIO 565.048 RIO GRANDE DO SUL
RELATOR :MIN. MARCO AURÉLIO
RECTE.(S) :MAXPOL - INDUSTRIAL DE ALIMENTOS LTDA
ADV.(A/S) :MATEUS FETTER DE ALMEIDA
RECDO.(A/S) :ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PROC.(A/S)(ES) :PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DO RIO
GRANDE DO SUL
R E L A T Ó R I O
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – O recurso
extraordinário foi interposto, em processo revelador de mandado de
segurança, contra o acórdão, de folha 119 a 130, por meio do qual o
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul deu provimento parcial à
apelação do Estado para, reconhecida a constitucionalidade do parágrafo
único do artigo 42 da Lei estadual nº 8.820, de 27 de janeiro de 1989,
assentar a legitimidade de a Fazenda Pública autorizar a impressão de
talonários de notas fiscais, encontrando-se o contribuinte em mora quanto
ao Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, somente
mediante a prestação, pelo devedor, de fiança idônea, garantia real ou
outra fidejussória capaz de cobrir obrigações tributárias futuras
decorrentes de operações mercantis presumidas, envolvidos os
documentos fiscais requeridos. O pronunciamento ficou assim resumido:
APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. ICMS.
AUTORIZAÇÃO PARA IMPRIMIR DOCUMENTOS
FISCAIS. EXIGÊNCIA DE PAGAMENTO,
PARCELAMENTO OU GARANTIA RELATIVAMENTE AO
ICMS VENCIDO, QUANTO DE GARANTIA
RELATIVAMENTE AO VINCENDO.
1. O Fisco pode, por cautela, ante reiterada inadimplência e
débito que ultrapassa em muito o capital social, condicionar a
autorização para imprimir documentos fiscais, à prestação de
garantia real ou fidejussória, conforme a escolha da devedora, a
fim de cobrir operações futuras decorrentes da autorização, cujo
valor é estimado segundo o volume de operações dos últimos
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RE 565048 / RS
seis meses. É ilegal a exigência de pagamento, parcelamento ou
garantia relativamente ao ICMS vencido. Exegese do art. 42,
parágrafo único, e art. 39, § 2º, da Lei-RS 8.820/89. A exigência
de garantia, em tais circunstâncias, denunciadoras de que a
sociedade vem usando o documento fiscal para apenas captar
do público a quantia correspondente ao imposto, como se fosse
uma debênture, nada tem a ver com as situações das Súmulas
70, 323 e 547 do STF.
2. Por maioria, apelação provida em parte e no mais
sentença confirmada em reexame necessário.
O Juízo, ao deferir a segurança, assegurou o direito do contribuinte
devedor à impressão de blocos de notas fiscais independentemente do
oferecimento de garantias. Ao reformar a sentença, a maioria dos
integrantes da Primeira Câmara Cível do Tribunal de origem entendeu
ser razoável a exigência, que não se mostraria excessiva nem
consubstanciaria meio indireto de cobrança de débitos tributários
vencidos. Configuraria coação a pagamento apenas no “plano puramente
psicológico”, e não no jurídico, ante a falta de vínculo entre os débitos
existentes e a garantia imposta. Esta não serviria a cobrir o passado, mas
revelaria “precaução” ou “cautela do Fisco” em relação aos futuros e
presumidos débitos tendo em conta os “maus antecedentes” do
contribuinte inadimplente.
Concluiu pela ausência de violação aos artigos 5º, inciso XIII, e 170,
parágrafo único, da Constituição Federal, em razão do fato de o exercício
dos direitos consagrados nesses dispositivos encontrar-se sujeito às
restrições estabelecidas em lei. Igualmente, não haveria afronta ao artigo
5º, incisos XXXV e LV, da Carta de 1988, considerada a circunstância de o
contribuinte estar livre para resistir, na esfera administrativa ou judicial, à
pretensão do Estado. Também não resultaria em interdição do
estabelecimento, bastando o contribuinte prestar a garantia ou, assim não
podendo ou não desejando, requerer a emissão de notas fiscais avulsas
para mantê-lo em funcionamento.
Consignou que a recorrente possui débito de R$ 51.478,02 (cinquenta
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e um mil, quatrocentos e setenta e oito reais e dois centavos), superior ao
capital social de R$ 30.000,00 (trinta mil reais). Isso representaria
“desequilíbrio” e indicaria que a contribuinte, há muito tempo, utilizava
“o sistema de nota fiscal apenas como instrumento de captação do
dinheiro público”. Asseverou tratar-se de uma “debenturização” do
imposto, afastada, então, a adequação dos Verbetes nº 70, 323 e 547 da
Súmula do Supremo.
Houve voto vencido no sentido da inconstitucionalidade da norma
impugnada, reconhecendo-se a ofensa ao artigo 5º, incisos XIII, XXXV,
LIV e LV, e 170 da Carta da República. Apontou-se a inviabilidade de
prevalecer, sob uma óptica axiológica dos fatos, a presunção de
inadimplência futura do contribuinte sobre o direito constitucional ao
livre exercício da atividade econômica. Destacou-se a natureza remota e
improvável da inadimplência até consumação do fato, bem como a
possibilidade de o Fisco, por meio de ação própria, reaver o tributo.
Frisou-se restar ao contribuinte “fechar suas portas e, antes, apagar as
luzes” diante dos obstáculos criados pelo preceito atacado. Fez-se ver
cuidar-se de espécie de sanção política, várias vezes declarada
inconstitucional pelo Supremo.
No extraordinário, de folha 157 a 189, interposto com alegada base
nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional e admitido na origem,
a recorrente articula com a transgressão dos artigos 5º, incisos XIII, XXXV,
LIV e LV, e 170 do Diploma Maior. Aduz que a exigência de garantia para
a impressão de documentos fiscais, em razão da existência de débitos
tributários, acarreta indevida obstrução ao exercício da atividade
econômica. Afirma não poder se valer o Fisco de meios indiretos de
coerção para arrecadação tributária. Cita os Verbetes nº 70, 323 e 547 da
Súmula do Supremo e as decisões relativas ao Recurso Extraordinário nº
409.956/RS, relator ministro Carlos Velloso, julgado em 2 de agosto de
2004, ao Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 216.983/SP,
relator ministro Carlos Velloso, apreciado em 6 de outubro de 1998, e à
Medida Cautelar na Petição nº 2.772/RS, relator ministro Celso de Mello,
examinada em 18 de outubro de 2002.
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No tocante à repercussão geral, sustenta a relevância do tema em
face da circunstância de a matéria concernir a inúmeras empresas que não
poderão obter documentos fiscais se não apresentarem as garantias.
Ressalta a presença de interesse público, porquanto o fato impede o
regular exercício da atividade empresarial.
Nas contrarrazões de folha 180 a 185, o Estado do Rio Grande do Sul
alega, em preliminar, o descabimento do recurso por falta de repercussão
geral da questão aduzida e ausência de prequestionamento dos
dispositivos constitucionais apontados como violados. Evoca os Verbetes
nº 282 e 356 da Súmula do Supremo. Citando o óbice revelado no Verbete
nº 280 também da Súmula do Tribunal, explicita que o acórdão
impugnado ficou fundamentado em legislação local.
Quanto ao mérito, salienta o direito de proteger o crédito público
contra contribuintes que deixem de recolher o Imposto Sobre Circulação
de Mercadorias e Serviços. Diz da possibilidade de imposição de
requisitos legais ao exercício de qualquer atividade econômica.
O denominado Plenário Virtual admitiu configurada a repercussão
geral, sendo elaborada a seguinte ementa:
REPERCUSSÃO GERAL – DÉBITO FISCAL –
IMPRESSÃO DE NOTAS FISCAIS – EXIGÊNCIA DE
GARANTIA. Admissão pelo Colegiado Maior.
O Ministério Público, às folhas 201 e 202, opina pelo provimento do
recurso. Remete, como razão do parecer, à decisão proferida no Agravo
Regimental no Agravo de Instrumento nº 424.182, relator ministro Carlos
Velloso, julgado em 30 de setembro de 2003.
É o relatório.
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RECURSO EXTRAORDINÁRIO 565.048 RIO GRANDE DO SUL
V O T O
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Na
interposição deste recurso, observaram-se os pressupostos de
recorribilidade. A peça está subscrita por profissional da advocacia
credenciado mediante a procuração de folha 10. O acórdão impugnado
foi disponibilizado no Diário da Justiça eletrônico de 18 de maio de 2007,
considerado como data da publicação o primeiro dia útil posterior, 21
seguinte, segunda-feira, consoante o artigo 4º da Lei nº 11.419/2006. A
manifestação do inconformismo veio à balha em 4 subsequente, segundafeira.
Improcedem as preliminares apontadas pelo Estado do Rio Grande
do Sul. O Tribunal de origem adotou entendimento a partir da
Constituição Federal, tendo sido a matéria, sob tal ângulo, objeto de
debate e decisão prévios. Conheço.
O tema não é novo, tendo sido enfrentado em diferentes
oportunidades neste Plenário. Envolve a tomada de empréstimo, por
parte do Fisco, de meio coercitivo objetivando a satisfação de débito
tributário. Em síntese, a legislação local submete o contribuinte, quando
em débito, à prestação de garantias reais ou fidejussórias para obter
autorização alusiva à impressão de talonário de notas fiscais.
Em julgados anteriores, entendi conflitantes com a Carta da
República procedimentos dessa natureza. Concluí que a Fazenda deve
buscar o Judiciário visando à cobrança, via executivo fiscal, do que
devido, mostrando-se impertinente recorrer a métodos que acabem
inviabilizando a própria atividade econômica, como é o relativo à
proibição de as empresas em débito, no tocante a obrigações, principal e
acessórias, vir a emitir documentos considerados como incluídos no
gênero fiscal.
Eis o disposto no parágrafo único do artigo 42 da Lei nº 8.820/89, que
instituiu o Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS
no Estado do Rio Grande do Sul:
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Art. 42 – Os contribuintes e outras pessoas sujeitas à
inscrição, relativamente a cada estabelecimento, são obrigados a
manter e escriturar livros fiscais e a emitir documentos,
segundo o disposto em regulamento.
Parágrafo único - A Fiscalização de Tributos Estaduais,
quando da autorização para impressão de documentos fiscais,
poderá limitar a quantidade a ser impressa e exigir garantia,
nos termos do art. 39, quando a utilização dos referidos
documentos puder prejudicar o pagamento do imposto
vincendo, ou quando ocorrer uma das hipóteses mencionadas
no art. 39. (Incluído pela Lei n.º 10.908/96)1
Os mencionados artigo 39 e § 2º prescrevem:
Art. 39. O deferimento da inscrição fica condicionado à
prestação de fiança idônea, cujo valor será equivalente ao
imposto calculado sobre operações ou prestações estimadas por
Fiscais de Tributos Estaduais, por um período de 6 (seis) meses,
caso o interessado, tendo sido autuado por falta de pagamento
de impostos estaduais devidos, deixou de apresentar
impugnação no prazo legal, ou se o fez, foi julgada
improcedente, estendendo-se o aqui disposto, no caso de
sociedades comerciais, aos sócios ou diretores. (...)
§ 2º – Para os fins deste artigo, a garantia não ficará
adstrita à fiança, podendo ser exigida garantia real ou outra
fidejussória.
A leitura conjunta dessas normas revela que o preceito legal
impugnado neste recurso – o parágrafo único do citado artigo 42 –
permite à Administração Tributária condicionar a autorização de
impressão de notas fiscais, em caso de contribuinte devedor do Imposto
1 Atualmente, esse parágrafo único do art. 42, da Lei nº 8.820, de 1989, vigora, sem
alteração de conteúdo, como parágrafo 1º ante a alteração promovida pela Lei nº 12.209, de
2004.
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Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, à prestação de fiança,
garantia real ou outra fidejussória, equivalente ao débito estimado do
tributo relativo ao período subsequente de seis meses de operações
mercantis presumidas. Em outras palavras, o sujeito passivo é obrigado a
apresentar garantia em virtude de débitos passados, mas calculada tendo
em conta débitos futuros, incertos quanto à ocorrência e ao montante.
Essas normas vinculam a continuidade da atividade econômica do
contribuinte em mora ao oferecimento de garantias ou ao pagamento
prévio do devido a título de tributo. Ante a impossibilidade de impressão
de talonário de notas fiscais, salvo garantia prevista com base em débitos
ainda não existentes, o contribuinte encontra-se coagido a quitar a
pendência sem mais poder questionar o passivo, sob pena de encerrar as
atividades.
Trata-se de providência restritiva de direito, complicadora ou
mesmo impeditiva da atividade empresarial do contribuinte para forçá-lo
a adimplir. Não passa de falácia, sem prejuízo da irracionalidade, o
argumento de garantia de débitos vincendos. A garantia em favor do
futuro, como é traço comum dessas medidas restritivas, consubstancia
mero pretexto para cobrar o tributo passado2.
Surge o que, em Direito Tributário, convencionou-se chamar de
“sanções políticas” ou “indiretas”. Segundo Hugo de Brito Machado,
correspondem a “restrições ou proibições impostas ao contribuinte, como
forma indireta de obrigá-lo ao pagamento do tributo, tais como a
interdição do estabelecimento, a apreensão de mercadorias, o regime
especial de fiscalização, entre outras”, incluída, como na situação
concreta, “recusa de autorização para imprimir notas fiscais”3.
São práticas sancionatórias, limitadoras, em excesso, das atividades
econômicas e profissionais dos contribuintes, desafiadoras de liberdades
2 BIM, Eduardo Fortunato. A Inconstitucionalidade das Sanções Políticas Tributárias
no Estado de Direito: Violação ao Substantive Due Processo of Law (Princípios da
Razoabilidade e da Proporcionalidade). In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.) Grandes
Questões Atuais de Direito Tributário Vol. 8, São Paulo: Dialética, 2004, p. 76.
3 MACHADO, Hugo de Brito. Sanções Políticas no Direito Tributário. Revista
Dialética de Direito Tributário nº 30, São Paulo: Dialética, março de 1998, p. 46.
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fundamentais consagradas na Carta Maior, por meio das quais o Estado
se afasta do meio legítimo estabelecido pela ordem jurídica para cobrar
tributos – a ação de execução fiscal. Então, em face desse quadro de
afronta ao Texto Constitucional, as normas gaúchas devem ser julgadas
sob o ângulo do conflito com o direito fundamental de livre iniciativa e
com o devido processo legal. Diante de tais parâmetros, a
inconstitucionalidade apresenta-se manifesta.
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 173,
relator ministro Joaquim Barbosa, em 25 de setembro de 2008, fiz ver a
natureza do princípio constitucional implícito da proibição do exercício
de coação política para haver o recolhimento do tributo. Consignei a
absoluta ilegitimidade dessa prática fazendária sob a égide de uma Carta
democrática, como a de 1988. A incompatibilidade é flagrante ante a
restrição desarrazoada à liberdade fundamental de exercício de
atividades profissionais e econômicas. Viola o devido processo legal, haja
vista o Fisco utilizar instrumentos oblíquos para coagir o contribuinte ao
pagamento do tributo.
Nessa ação direta, o Supremo, por unanimidade, confirmou
jurisprudência histórica quanto à inconstitucionalidade das sanções
políticas por afronta ao “direito ao exercício de atividades econômicas e
profissionais lícitas (artigo, 170, parágrafo único, da Constituição)” e
“violação ao devido processo legal substantivo (falta de
proporcionalidade e razoabilidade de medidas gravosas que se
predispõem a substituir os mecanismos de cobrança de créditos
tributários)”.
Prevaleceu a óptica revelada nos Verbetes nº 70, 323 e 547 da Súmula
do Supremo:
É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio
coercitivo para cobrança de tributo. (Verbete nº 70, de 13 de
dezembro de 1963)
É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio
coercitivo para pagamento de tributos. (Verbete nº 323, de 13 de
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dezembro de 1963)
Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em
débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas
alfândegas e exerça suas atividades profissionais. (Verbete nº
547, de 3 de dezembro de 1969)
Subjacente aos mencionados verbetes e a toda jurisprudência está a
recusa do Tribunal em reconhecer a sujeição de direitos fundamentais ao
arbítrio estatal na cobrança de tributos. Formuladas com respaldo no
artigo 141, § 14, da Carta de 1946 e no artigo 150, § 23, da de 1967, essas
orientações ainda subsistem na nova ordem constitucional e no sistema
de liberdades fundamentais vigente. O livre exercício de atividades
profissionais e econômicas lícitas, assegurado nos artigos 5º, inciso XIII, e
170, parágrafo único, do Diploma Maior atual, não pode sofrer restrições
desarrazoadas por parte do legislador, mesmo para o fim de satisfazer
tributos, admitida a cobrança tão somente por meio consentâneo com o
devido processo legal.
O Estado não pode privar o cidadão do meio idôneo, estabelecido no
arcabouço jurídico e informado pelo princípio da ampla defesa – o
executivo fiscal –, para utilizar mecanismos indiretos e mais opressivos de
cobrança de tributos. Atuando dessa forma, acaba por desrespeitar o
devido processo legal tanto na dimensão processual quanto na
substancial. Olvida as regras adequadas e moderadas do jogo bem como
impõe restrições carentes de razoabilidade aos direitos e liberdades dos
contribuintes. Incorre em verdadeiro desvio de poder legislativo4.
É verdade não existirem direitos fundamentais absolutos, e os do
artigo 5º, inciso XIII, e 170, parágrafo único, da Carta Federal estão
sujeitos a uma margem de disciplina legal, mas ao legislador descabe
fixar restrições excessivas ou arbitrárias. Segundo o tributarista
4 BIM, Eduardo Fortunato. A Inconstitucionalidade das Sanções Políticas Tributárias
no Estado de Direito: Violação ao Substantive Due Processo of Law (Princípios da
Razoabilidade e da Proporcionalidade). In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.) Grandes
Questões Atuais de Direito Tributário Vol. 8, São Paulo: Dialética, 2004, p. 76.
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Humberto Ávila, a jurisprudência do Supremo demonstra que a
observância do “direito à liberdade de exercício de atividade econômica
exterioriza-se pela proibição de excesso”. Isso significa, consoante o autor,
lembrando as palavras do ministro Orozimbo Nonato, que “o poder de
instituir tributos inclui a obrigação de manter as atividades dos
contribuintes.” Mostra-se inadmissível que o poder de tributar leve à
anulação dos direitos fundamentais5.
O abuso dos meios, com a consequente corrupção dos fins, é a nota
essencial e autoritária das medidas cujo gênero foi rotulado de sanções
políticas em matéria tributária. A falta de sintonia desses mecanismos de
coação fiscal com as garantias constitucionais do Estado Democrático de
Direito, inaugurado com a Carta de 1988, revela caráter ditatorial e
perverso. Como disse Ruy Barbosa Nogueira, saudoso Titular da
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, as “sanções políticas são
resquícios do ancien régime anterior à Revolução Francesa. Não têm
cabimento dentro do atual Sistema Tributário Nacional”6. Para o
professor, o Fisco promove verdadeira execução de dívida pelas próprias
mãos, consubstanciada na “imposição de penalidades sem forma de
processo ou execução manu militari”7.
Cumpre ao Supremo reafirmar a jurisprudência e, em sede de
repercussão geral, afastar da ordem jurídica restrições excessivas e
abusivas, apenas toleráveis em um contexto ditatorial.
Entre as muitas espécies de sanções políticas por meio das quais o
legislador tributário, fora do meio judicial adequado, costuma
constranger o contribuinte a pagar o tributo devido e não recolhido, há a
proibição de impressão de talonários de notas fiscais, caso deste recurso
extraordinário. No de nº 413.782, de Santa Catarina, que esteve sob a
minha relatoria, julgando situação análoga, o Pleno, em 17 de março de
5 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5ª ed. São Paulo: Saraiva,
2012, pp. 398/399.
6 NOGUEIRA, Ruy Barbosa Nogueira. Curso de Direito Tributário. 14ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1995, p. 205.
7 NOGUEIRA, Ruy Barbosa Nogueira. Curso de Direito Tributário. 14ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1995, p. 296.
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2005, assentou a inconstitucionalidade da proibição de impressão de
notas fiscais em desfavor de contribuinte devedor e da subordinação à
alternativa das chamadas “notas avulsas”. Eis a ementa do acórdão:
DÉBITO FISCAL – IMPRESSÃO DE NOTAS FISCAIS –
PROIBIÇÃO – INSUBSISTÊNCIA. Surge conflitante com a
Carta da República legislação estadual que proíbe a impressão
de notas fiscais em bloco, subordinando o contribuinte, quando
este se encontra em débito para com o fisco, ao requerimento de
expedição, negócio a negócio, de nota fiscal avulsa.
Na ocasião, consideradas a proibição de emissão dos documentos
fiscais e a alternativa de o Fisco fornecer nota individualizada a cada
operação mercantil, consignei:
Imagine-se o que implica, a cada negócio jurídico, ter-se
de requerer à repartição fazendária competente a emissão de
nota fiscal avulsa. A regência local da matéria abrange previsão
incompatível com a ordem natural das coisas, com o princípio
constante do parágrafo único do artigo 170 da Carta da
República, segundo o qual é assegurado a todos o livre
exercício de qualquer atividade econômica. Repita-se: na
dinâmica da própria atividade desenvolvida, fica inviabilizada
a atuação, se aquele que a implementa necessita, caso a caso, de
recorrer ao fisco, para a obtenção de nota fiscal avulsa. Em
Direito, o meio justifica o fim, mas não este, aquele. Recorra a
Fazenda aos meios adequados à liquidação dos débitos que os
contribuintes tenham, abandonando a prática de fazer justiça
pelas próprias mãos, como acaba por ocorrer, levando a
empresa ao caos, quando inviabilizada a confecção de blocos de
notas fiscais.
A maioria do Colegiado, vencido o ministro Eros Grau, concordou
com as premissas, apontada a mácula ao Texto Constitucional pela
previsão legal da medida sancionatória.
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Os mesmos raciocínios e fundamentos cabem na espécie. Configura
afronta à Carta da República e ao sistema de liberdades fundamentais o
contribuinte devedor, para exercer profissão ou atividade econômica, ser
obrigado, como condição de emissão de notas fiscais, a oferecer garantia
com o fim de, consoante discurso falacioso do legislador, prevenir ou
acautelar débitos futuros cuja existência e valor são presumidos.
Como não bastasse a inconstitucionalidade da exigência
considerados os contornos legais em abstrato ante as garantias
constitucionais, há particularidades do caso reveladoras de o quanto a
aplicação dessas sanções políticas pode resultar em quadros concretos
que extrapolam o razoável. Não obstante tratar-se de julgamento de
extraordinário sob o ângulo da repercussão geral, o Supremo deve atentar
para aos contornos da lide fixados no recurso.
No acórdão recorrido, ficou consignado que o recorrente possui um
débito de R$ 51.478,02 (cinquenta e um mil, quatrocentos e setenta e oito
reais e dois centavos), valor superior ao capital social, de R$ 30.000,00
(trinta mil reais). Para a maioria do Tribunal de origem, essa diferença
representa “desequilíbrio” e indica a prática de o contribuinte utilizar “o
sistema de nota fiscal” como “instrumento de captação do dinheiro
público”. No voto condutor do julgamento, destacou-se cuidar-se de
“debenturização” do imposto pelo recorrente e, ante essas razões, o
Tribunal veio a assentar a inadequação da jurisprudência do Supremo,
mormente dos Verbetes nº 70, 323 e 547 da Súmula.
Está longe de ser razoável impedir o contribuinte de obter os
documentos fiscais essenciais para o livre exercício de atividades
econômicas em função do montante de débito apontado. Inexiste risco
suficiente, nesse patamar, a justificar a obstrução, o que demonstra como
normas similares à ora examinada consubstanciam verdadeiros “cheques
em branco” para a prática de atos arbitrários e desproporcionais,
violadores das liberdades fundamentais dos contribuintes. Vê-se, no
mínimo, o exagero da conclusão, constante no acórdão atacado, sobre o
“desequilíbrio” entre débito e capital social da empresa e o uso das notas
fiscais para captação de dinheiro público. O valor em comento pode ser
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Cópia
RE 565048 / RS
buscado mediante o executivo fiscal, revelado o único objetivo da medida
restritiva impugnada – ser um meio coercitivo para o recolhimento do
débito. Os contornos do caso concreto realçam a que ponto podem chegar
abusos cometidos a partir da previsão abstrata das chamadas sanções
políticas.
Ante o exposto, não há dúvida de que o preceito impugnado
contraria os dispositivos constitucionais evocados, ou seja, a garantia do
livre exercício do trabalho, ofício ou profissão – inciso XIII do artigo 5º – e
de qualquer atividade econômica – parágrafo único do artigo 170 – assim
como o devido processo legal – artigo 5º, inciso LIV.
Conheço e provejo o recurso para, restabelecido o entendimento
sufragado pelo Juízo, deferir a segurança pleiteada, assegurado o direito
do recorrente à obtenção de autorização para impressão de talonários de
notas fiscais independentemente de prestação de fiança, garantia real ou
outra fidejussória, declarando a inconstitucionalidade do parágrafo único
do artigo 42 da Lei nº 8.820, de 27 de janeiro de 1989, do Estado do Rio
Grande do Sul.
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