União usa dados conflitantes para tentar sensibilizar ministros do STF
24 de setembro de 2014
Quem cria a insegurança jurídica não pode se valer dela em benefício próprio. Ao escrever essa frase, o professor Eurico Diniz de Santi, da Escola de Direito da FGV de São Paulo, usou de uma precisão cirúrgica para definir a atuação do governo federal em disputas fiscais. A tese do professor, registrada num estudo sobre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) em modulação de efeitos em processos tributários, foi confirmada na semana passada quando a Fazenda Nacional reduziu em R$ 20 bilhões uma conta que deveria acertar com os contribuintes. O caso em questão é o Recurso Extraordinário 55.9937.
Em 20 de março de 2013, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), subsidiada com dados da Receita Federal, levantou uma questão de ordem no plenário do STF. Pedia que a decisão unânime recém proferida passasse a valer a partir daquela data ou da publicação do acórdão. Motivo? Um impacto financeiro de R$ 34 bilhões com a devolução do que o Fisco havia recolhido a mais dos contribuintes.
Tratava-se da discussão sobre a inclusão do ICMS e das próprias contribuições no cálculo do PIS e da Cofins incidentes na importação de bens e serviços, declarada inconstitucional pelo Supremo. O valor anunciado, porém, não surpreendeu os que acompanhavam o processo de perto. Estava previsto no relatório de Riscos Fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2013 – R$ 34 bilhões, referente ao período de 2006 a 2010.
A questão de ordem fora negada pelo ministro Dias Toffoli, redator do acórdão. “Eu penso que esse tema – se for o caso – deve a Fazenda trazer em embargos de declaração, para que se faça uma avaliação com dados concretos. Não há elementos aqui para se fazer uma avaliação”, dissera o ministro, na ocasião.
Os “dados concretos” foram levados aos ministros, por meio de embargos de declaração. Mas o rombo nos cofres públicos já era outro, R$ 20 bilhões inferior ao anunciado na tribuna e apresentado no orçamento. Passou para R$ 14,29 bilhões, valor relativo aos anos de 2008 a 2012 e já corrigido pela taxa Selic.
Em nota técnica de uma folha – anexada ao recurso da PGFN –, o Fisco informou que a decisão ainda geraria perda de R$ 3,29 bilhões em arrecadação, no ano de 2013.
No mesmo documento – datado de 5 de novembro de 2013 –, os técnicos da Receita José Geraldo Gangana, Roberto Name Ribeiro e Othoniel Lucas de Souza Júnior apontaram que, “para eliminar o efeito da redução da base de cálculo”, haveria a necessidade de aumentar a alíquota do PIS/Cofins Importação dos atuais 9,25% para 11,75%. “A elevação da alíquota permitiria uma recuperação mensal de receitas no valor de R$ 268,77 milhões”, afirmaram.
Mas o próprio governo já tinha se antecipado a isso. Um mês antes, havia editado a Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, que ajustou a legislação à decisão do STF. Por meio desta norma, o ICMS e as próprias contribuições foram excluídos do cálculo do PIS e Cofins na importação. Não houve majoração da alíquota.
Ao JOTA, a Receita explicou que os R$ 34 bilhões diziam respeito à redução de arrecadação das contribuições. Já para se chegar aos R$ 14,29 bilhões, a Receita considerou o fato de que o PIS/Cofins não cumulativo “recuperaria parte da perda” das duas contribuições incidentes na importação. Isso porque créditos decorrentes do PIS e Cofins pagos na importação já devem ter sido usados para abatimento das contribuições devidas na venda ou produção.
Insegurança em série
A dificuldade de saber com segurança o valor envolvido em ações judiciais contra a Fazenda Pública não se restringe a esse caso.
Na discussão levantada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sobre o limite de abatimento de gastos de educação no recolhimento do Imposto de Renda, por exemplo, o Fisco estimou prejuízo de R$ 50 bilhões. Após o valor ser contestado pelo próprio Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), o Fisco recalculou o impacto para R$ 1,2 bilhão. A ação direta de inconstitucionalidade (Adin) ainda será julgada.
Ao contrário do ocorrido no caso dos expurgos inflacionários da poupança em que o impacto financeiro com eventual ressarcimento foi constantemente discutido e questionado a partir de estudos técnicos e pareceres, advogados afirmam ser “tarefa impossível” contestar os números levantados pelo Fisco em discussões tributárias. “Como é possível questionar números trazidos em uma folha de papel sem variáveis e dados pormenorizados?”, diz um tributarista.
Historicamente, porém, o STF não tem considerado a repercussão econômica como elemento suficiente para modular efeitos de decisões. A conclusão é justamente do estudo realizado pelo Núcleo de Estudos Fiscais da Escola de Direito da FGV-SP. “Para determinar a modulação, o STF sempre se pautou por razões de lacuna normativa, alteração de entendimento jurisprudencial e, em última instância, de insegurança no sistema jurídico”, afirma o professor de Santi.
O Supremo negou a modulação em 100% dos casos de declaração de inconstitucionalidade de norma tributária analisados pela FGV. Foi o caso do Funrural, da progressividade do IPTU e da ampliação da base de cálculo do PIS e da Cofins, por exemplo. O mesmo ocorreu nas situações em que o contribuinte saiu vencedor, ou seja, em que a norma que criou ou majorou tributos foi declarada constitucional.
Resta saber se a mesma lógica será adotada no processo tributário de maior repercussão econômica em andamento, que discute a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, caso estimado pela União em R$ 90 bilhões.
Por Bárbara Pombo
Jota.info
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