VALOR ECONÔMICO - LEGISLAÇÃO & TRIBUTOS
Crescem no Coaf casos de indícios de lavagem
Em abril do ano passado, a Polícia Federal deflagrou uma operação, batizada de Hurricane, para combater a exploração do jogo ilegal e crimes contra a administração pública. Das 25 pessoas presas por envolvimento nos crimes, 14 já haviam tido seus nomes incluídos em sete relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), unidade de inteligência financeira do Ministério da Fazenda, enviados a autoridades por indícios de terem praticado lavagem de dinheiro. Meses mais tarde, em junho, uma outra operação da Polícia Federal - a Aquarela, feita para desvendar um esquema de desvio de recursos públicos - resultou na prisão de 19 pessoas, sendo que oito delas já constatam em relatórios do Coaf também encaminhados aos Ministério Público e às polícias. Outros 748 nomes, entre os 2.607 identificados pelas autoridades policiais de São Paulo por suposto envolvimento no crime organizado, fizeram parte de 13 relatórios gerados pelo Coaf, nos quais constavam movimentações de R$ 63 milhões por meio de 686 contas bancárias. Os exemplos acima ilustram a atividade do Coaf, que desde que foi criado, há exatos dez anos, registrou um aumento de mais de 100.000% no número de comunicações recebidas pelos setores que, pelas regras da atual Lei de Lavagem de Dinheiro, são obrigados a informar operações suspeitas ao órgão.
Com o crescimento do número de comunicações recebidas, aumentou também a quantidade de relatórios produzidos pelo Coaf e enviados às autoridades responsáveis pela abertura de inquéritos. No ano passado foram 1.555 documentos, produzidos a partir de 23.858 comunicados recebidos dos diferentes setores e envolvendo nomes de 9.839 pessoas físicas e jurídicas. Não há dados que detalhem o resultado do envio dos relatórios do Coaf às autoridades, mas uma pesquisa feita em 2006 com uma amostra de 100 deles mostra que 75% desses documentos se transformam em inquéritos no Ministério Público ou na polícia.
O crescimento da chamada "matéria-prima" do Coaf ocorreu aos poucos, à medida que o órgão começou a refinar as regras destinadas aos setores não-regulados que são obrigados a comunicar operações suspeitas - como o imobiliário e as empresas de factoring. A investida do Coaf em relação às factorings e imobiliárias faz parte de uma estratégia de levar os setores sujeitos à obrigação de comunicar operações suspeitas, mas que não são regulados por nenhum órgão do governo, a participar do processo de combate à lavagem de dinheiro. Desde 1998, quando o órgão foi criado pela Lei nº 9.613 - a Lei de Lavagem de Dinheiro -, bancos e seguradoras têm sido os principais fornecedores de informações sobre operações consideradas suspeitas. Isto porque eles obedecem as regras do Banco Central (BC) e da Superintendência de Seguros Privados (Susep), respectivamente, e por este motivo são mais recorrentes entre os informantes do Coaf.
A situação, no entanto, vem mudando ao longo do tempo. Depois de alterar a regulamentação que define as regras para os comunicados das factorings, em 2005, o número de operações feitas por estas empresas informadas ao Coaf aumentou de apenas 27 em 2004 para 8.828 no ano passado. O mesmo ocorreu com as imobiliárias, que passaram a estar sujeitas a novas regras em 2006. Naquele ano, foram 747 operações de compra e venda de imóveis comunicadas ao Coaf, número que no ano passado saltou para 1.736. Hoje, das 14.046 empresas do setor imobiliário existentes no país, 58% já estão cadastradas no Coaf para o envio de informações - é hoje o setor com maior número de empresas cadastradas no órgão.
"Nossa base de dados tem aumentado de forma geométrica", diz o presidente do Coaf, Antônio Gustavo Rodrigues, que em julho passará a presidir também o Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (GAFI), organismo internacional que funciona no âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do qual o Brasil faz parte. De acordo com ele, o que explica este aumento é a alteração das resoluções destinadas a cada setor, que de exemplificativas passaram a ser mandatórias. Os próximos passos, segundo Rodrigues, serão alterações nas áreas de loterias estaduais, seguros e fundos de pensão. No caso dos seguros, Rodrigues diz que a Susep deve editar em breve uma nova resolução para fazer ajustes na atual, que prevê que as seguradoras e corretoras comuniquem qualquer venda de apólices de valor acima de R$ 1 milhão. Em função deste piso, o Coaf passou a receber milhares de comunicados do setor - apenas no ano passado foram 112.856 -, material de pouca utilidade para o órgão. Os fundos de pensão, da mesma forma, também devem ganhar uma nova resolução da Secretaria de Previdência Complementar (SPC).
Já as loterias são um caso à parte. Isto porque as federais são regidas pela Caixa Econômica Federal (CEF) e, assim, casos de lavagem de dinheiro são muito fáceis de serem identificados. O mesmo não ocorre, no entanto, com as loterias estaduais, que ainda existem em 18 Estados do país, embora o governo federal considere legais apenas quatro delas - as demais são objeto de ações diretas de inconstitucionalidade (Adins) impetradas pela União no Supremo Tribunal Federal (STF). Enquanto uma nova regulamentação para o setor não sai, o Coaf continua identificando casos de pessoas que ganham mais de 200 vezes em loterias - comprando bilhetes premiados de valores baixos nas lotéricas e, assim, legalizando dinheiro proveniente de atividades criminosas. "Agora estamos sofisticando as normas do setor para, ao invés de focar apenas no sujeito que ganha, focar nas lotéricas", diz Rodrigues.
Projeto altera lei e amplia rol de atividades sujeitas à fiscalização
A tramitação do projeto que altera a Lei de Lavagem de Dinheiro na Câmara dos Deputados deve ser acompanhada de uma série de polêmicas. Aprovado no plenário do Senado Federal na quinta-feira, o Projeto de Lei nº 209 retira da legislação atual o chamado rol de crimes antecedentes à lavagem de dinheiro - crimes que são passíveis também de condenação por lavagem caso haja ocultação dos bens obtidos de forma ilícita -, fazendo com que qualquer crime possa ser objeto de dupla condenação. Tão polêmico quanto os crimes antecedentes deverá ser o inciso XIV do artigo 9º do projeto, que se aprovado inclui novas atividades na lista das que são obrigadas a informar operações atípicas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
De acordo com o texto do projeto de lei, as pessoas físicas ou jurídicas que prestem serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência de qualquer natureza em operações de compra e venda de imóveis ou participações societárias, gestão de ativos, criação, exploração ou gestão de sociedades, financeiras, societárias ou imobiliárias, entre outras atividades, ficam também obrigadas a informar ao Coaf operações consideradas suspeitas. E, a depender da interpretação que se faça do texto, isto inclui os advogados - que pelo Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), são obrigados a manter sigilo sobre as informações repassadas por seus clientes.
O tema já gerou polêmica no passado, quando, em 2005, a primeira minuta de um anteprojeto de lei elaborado pelo Ministério da Justiça para alterar a Lei de Lavagem de Dinheiro trazia os advogados na lista das atividades que serviriam como fontes de informações sobre lavagem de dinheiro, com a previsão de que eles seriam obrigados a delatar operações suspeitas de seus clientes. A classe resistiu e acabou saindo vitoriosa, pois foi excluída do texto. O anteprojeto acabou não sendo apresentado no Congresso Nacional, mas muitos de seus dispositivos foram incluídos no projeto agora aprovado no Senado.
De acordo com o advogado Antenor Madruga, sócio do escritório Barbosa, Müssnich e Aragão Advogados e que à época acompanhou as discussões sobre o tema como diretor do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça, a intenção do projeto não é a de fazer com que os advogados informem operações suspeitas realizadas por seus clientes. "Isto seria inconstitucional", afirma. Segundo ele, a previsão de obrigatoriedade refere-se apenas a atividades que não são próprias dos escritórios de advocacia - como, por exemplo, um advogado participar de um determinado negócio como sócio de seu cliente. "Em momento nenhum o projeto de lei pretendeu interferir na relação entre advogados e seus clientes", diz. Madruga reconhece, no entanto, que o texto do projeto pode dar margem a interpretações diversas. "A linha que separa as duas situações é tênue", afirma.
O presidente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Luiz Flávio Borges D'Urso, também acredita que, da forma como está, o texto do projeto deixa este ponto à mercê de interpretações. "O projeto não cita a categoria profissional, mas cita suas atividades", afirma. D'Urso diz que encaminhará o tema ao Conselho Federal da OAB e acionará os deputados que fazem parte da Frente Parlamentar de Advogados - já que o projeto ainda precisa de aprovação na Câmara dos Deputados - para que haja alterações no texto.
Cristine Prestes, de Brasília
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