25/08/2015
Depósitos judiciais e a fome do Estado


Depósitos judiciais e a fome do Estado

25 de agosto de 2015

A presidente da República sancionou recentemente a Lei Complementar nº 151, de 5 de agosto, que dispõe sobre a transferência de depósitos judiciais realizados em feitos de que seja parte o Estado para a conta única do Tesouro.

A legislação complementar federal segue a de alguns Estados que já trilharam o mesmo caminho e visa propiciar a Estados e municípios o pagamento de precatórios de que são devedores. Como este não efetua o pagamento imediato, nem se permite penhora de seus bens, o caminho que se segue é a expedição de precatório a ser pago até o fim do exercício seguinte.

Durante muitos anos, Estados e municípios não cumpriram tal obrigação, gerando um débito gigantesco. O Supremo Tribunal Federal (STF), diante de ação direta de inconstitucionalidade movida contra a reforma que permitiu o pagamento mediante desistência parcial do crédito em leilão, entendeu que a emenda constitucional era inconstitucional.

Logo, logo, o juiz expedirá mandado de levantamento e não haverá recurso para devolução, pois o Estado apropriou-se dele

Fica difícil ao jurista compreender o que se fez. Imagino a dificuldade do leitor em acompanhar.

O Supremo fixou prazo para pagamento de todos os débitos existentes. Alguns Estados e municípios não têm a menor condição de adimplir a obrigação. Daí a saída legal que se pretende agora. A saber, permitir que os entes federativos possam pagar os precatórios com uso dos depósitos.

Uma primeira observação diz respeito ao depósito obrigatório das quantias em estabelecimento oficial de crédito. Ora, a Constituição Federal não pode outorgar qualquer privilégio ao estabelecimento oficial de crédito. Quando o Estado intervém na economia deve agir em concorrência com as demais pessoas jurídicas. Nenhum privilégio lhe pode ser outorgado.

Segundo ponto importante é que se deve examinar a origem dos depósitos. Entendemos que depósito efetuado para garantia de impor impedimento à fluência de juros é pagamento. Há expressa autorização para que o depósito se converta em receita do Estado, uma vez que é transferido à conta única. Não é o nome que dá natureza às coisas.

Ocorre, no entanto, que os demais depósitos decorrentes de conflitos judiciais não podem ter o mesmo conteúdo. A recente lei dispõe que eles só podem ser feitos em instituição oficial financeira, além de que tais valores sejam transferidos à conta da União.

Ora, converte-se o que não é receita em receita, num passe de mágica. Expliquemo-nos: a) há depósitos que são feitos para oportuna devolução e se constituem em meros ingressos; b) a receita financeira do Estado apenas ocorre com a entrada definitiva de dinheiro nos cofres públicos. A receita se constitui em recursos decorrentes da exploração patrimonial do Estado ou se trata de receita tributária. Outra coisa não se dá.

Ademais, a lei faz depender da solução do litígio o tipo de receita, o que é absurdo. Se vitorioso o litigante, ela determina que lhe seja devolvido o valor depositado com acréscimos legais. Se vencido, haverá a transformação em pagamento definitivo. Deste modo, há verdadeira manipulação de conceitos de direito financeiro em favor do Estado.

Os demais são depositados em conta própria e movimentada “por ordem do juiz” (art. 1219 do Código de Processo Civil). Ora, se o depósito provém de litígio entre poder público e particulares, o depósito fica sob responsabilidade do magistrado, e não se converte em receita.

Transferir recursos para a conta corrente da União constitui-se em apropriação indébita de recursos que estão à disposição do Judiciário. O juiz é a garantia da boa gestão do dinheiro e de sua devolução.

Não pode o legislador transformar depósitos efetuados para que sejam utilizados no pagamento de débitos do Estado com outras pessoas, pois este se valerá de dinheiro de terceiros para pagamento de seus débitos. É incrível monstruosidade financeira.

Obviamente, já se antevê o futuro de tais dinheiros em mãos do Poder Público. O uso irresponsável que tem caracterizado as diversas administrações aponta que o Estado irá se apropriar dos recursos e jamais os devolverá. Isso ensejará novos precatórios de segunda classe que serão expedidos em lugar dos primeiros que não foram pagos. É uma antevisão do futuro que se pode ter por conhecer os sentimentos dos governantes.

Mais: Se o orçamento é a lei de previsão de receitas e fixação de despesas, onde está a previsão orçamentária para tal “receita” criada por lei?

Em verdade, o que se faz é tentar cobrir o endividamento estatal com a invasão das finanças de particulares e até do próprio Judiciário.

Logo, logo, o juiz expedirá um mandado de levantamento e não haverá recurso para devolução ao credor, porque o Estado apropriou-se dele para efetuar pagamento de débitos de outra decisão judicial (os precatórios).

Kafka teria inveja da ficção brasileira, pois jamais lograria imaginar situações processuais que excluam o pobre do pastor que está diante da porta da Justiça.

Régis de Oliveira é advogado, professor da USP, desembargador aposentado, e ex-deputado federal por São Paulo.
Valor Econômico
« VOLTAR