JORNAL DO COMMERCIO - DIREITO & JUSTIÇA
Criação de fiança sofre rejeição
A proposta que visa a pôr a legislação brasileira de combate à lavagem de dinheiro entre as consideradas de "terceira geração" tem provocado polêmica no meio jurídico. São dois os principais pontos de divergência entre advogados e magistrados: a fiança e o acesso as informações cadastrais dos investigados. As medidas constam da proposição aprovada pelo Plenário do Senado em forma de substitutivo ao Projeto de Lei 209/03. O texto, de autoria do senador Pedro Simon (PMDB-RS), está na Câmara dos Deputados, onde deverão ocorrer novos embates entre as correntes pró e contra as mudanças propostas.
A fiança não está prevista na atual Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98). O substitutivo introduz essa medida para permitir que o réu responda ao processo em liberdade, desde que observados alguns critérios. Pela proposta, a fiança deverá ser "fixada proporcionalmente aos bens, direitos e valores envolvidos na infração penal, a qual poderá atingir até o total do valor estimado na prática criminosa."
Na avaliação do presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Walter Nunes, a medida é de extrema importância porque permitirá ao Estado reaver os prejuízos que sofreu com a prática delituosa, caso o réu seja condenado. Segundo o juiz, os mecanismos mais eficazes no combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado são justamente os que atingem o patrimônio dos criminosos.
Advogados têm opinião diferente. Para o criminalista Maurício Silva Leite, sócio do escritório Leite, Tosto e Barros Advogados Associados, por exemplo, a possibilidade de o juiz estabelecer a fiança segundo o valor que se presume tenha sido lavado fere o princípio de presunção de inocência. "Pelo substitutivo, se a suspeita girar em torno de R$ 10 milhões, a fiança poderá chegar a esse valor. No entanto, como vamos estabelecer a fiança nesse valor se ainda não houve condenação dizendo que essa foi a quantia lavada? Isso fere a presunção de inocência, que é um princípio constitucional", argumentou.
Para o advogado, a lei em vigor prevê meios de recuperação dos ativos desviados. "O artigo 7º prevê, como efeito da condenação a perda, em favor da União, dos bens, direitos e valores objetos do crime. Ou seja, a própria lei diz que, se houver condenação, respeitada a presunção de inocência, o patrimônio será revertido em favor do Estado", alegou.
O senador Pedro Simon, defende a medida. "Não estamos dizendo que a fiança deverá ser no mesmo valor que há suspeita de ter sido lavado. Poder chegar até lá. Estamos abrindo perspectivas. O juiz estabelecerá a quantia de acordo com a evidência do fato. Ele terá bom senso. Agora se os advogados de colarinho branco estão chateados, é sinal de que a lei é boa", argumentou.
O outro ponto de discordância é o que visa a dar, independentemente de autorização judicial, acesso ao delegado e ao Ministério Público aos dados cadastrais do investigado que informam qualificação pessoal, filiação e endereço, mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradores de cartão de crédito. Isso independentemente de autorização judicial
Maurício Leite critica essa previsão. "O artigo 5º da Constituição estabelece a proteção à intimidade e à vida privada, assim como o sigilo à correspondência e comunicação telefônica, por exemplo, salvo quando quebrados por ordem judicial para fins de investigação criminal. Não vejo necessidade de tirar isso da mão dos juízes", afirmou o criminalista, para quem a medida proposta fere a Carta Magna.
O presidente da Ajufe não vê problemas nessa consulta. "Toda atividade financeira é fiscalizada. Uma operação suspeita há de ser compartilhada por órgãos da fiscalização justamente para se verificar se houve irregularidades. Então, entendo não haver quebra de sigilo. A quebra de sigilo ocorre quando as informações são divulgadas ao público, ou seja, quando a vida da pessoa começa a ser exposta", argumentou.
CONSENSO
Nem todos os pontos propostos no substitutivo são alvo de divergência. Especialistas têm opinião parecida em relação à proposta que amplia a pena máxima, de dez para 18 anos de prisão, por exemplo. Maurício Leite e Walter Nunes são contra. "Não é o aumento da pena que irá atenuar a criminalidade. Nesse ponto, nada vejo de positivo", afirmou Walter Nunes. De acordo com ele, o combate efetivo requer a adoção de mecanismos que permitam maior repressão e, principalmente, efetividade das punições previstas na lei atual.
Opinião semelhante tem o criminalista Maurício Leite. "Essa é uma das incoerências da proposta, que equipara a pena do crime de lavagem de dinheiro quase à de homicídio. A Constituição estabelece uma ordem de valores. O crime contra a vida tem valor imensamente maior que o de lavagem de dinheiro. Não pode haver essa equiparação", afirmou.
Ambos concordam também com o fato de a proposta excluir o rol de crimes que podem anteceder a lavagem de dinheiro, previsto na lei atual. Segundo Walter Nunes, a regra cria situações controversas. A lavagem de dinheiro decorrente do jogo do bicho, por exemplo, não pode ser enquadrada na Lei 9.613/98. Por se tratar de uma contravenção, o delito não consta nessa listagem.
"Esse é um crime que chamamos de parasitário, que ocorre após outro. O legislador brasileiro optou por estabelecer uma lista dos crimes que antecederiam a lavagem de dinheiro. Nesse sentido, esse projeto é importante porque desvincula a lavagem de outros delitos", explicou o magistrado, que avalia a norma aprovada pelo Senado como sendo necessária para a atualização da legislação brasileira.
GISELLE SOUZA
DO JORNAL DO COMMERCIO
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