AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.105-8 DISTRITO FEDERAL
V O T O - V I S T A
O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO: 1. Trata-se de ação
direta de inconstitucionalidade que tem por objeto o art. 4º da Emenda
Constitucional nº 41/2003, que dispõe sobre a contribuição previdenciária dos
aposentados e pensionistas, verbis:
“Art. 4º Os servidores inativos e os pensionistas da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações,
em gozo de benefícios na data de publicação desta Emenda, bem como os
alcançados pelo disposto no seu art. 3º, contribuirão para o custeio do regime
de que trata o art. 40 da Constituição Federal com percentual igual ao
estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.
Parágrafo único. A contribuição previdenciária a que se refere o caput
incidirá apenas sobre a parcela dos proventos e das pensões que supere:
I – cinqüenta por cento do limite máximo estabelecido para os
benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da
Constituição Federal, para os servidores inativos e os pensionistas dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II- sessenta por cento do limite máximo estabelecido para os benefícios
do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição
Federal, para os servidores inativos e os pensionistas da União.”
A requerente alega que “os servidores públicos aposentados e os
que reuniam condições de se aposentar até 19 de dezembro de 2003 têm
assegurado o direito subjetivo, já incorporado aos seus patrimônios jurídicos, de
não pagarem contribuição previdenciária, forçosa a conclusão de que o art. 4º da
Emenda Constitucional nº 41, de 2003, não poderia, como fez, impor a eles a
obrigação de pagar dito tributo, de modo a prejudicar aquele direito adquirido e
impor aos seus titulares situação jurídica mais gravosa” (fls. 6), razão pela qual a
tributação dos inativos em gozo do benefício contrariaria o art. 5º, XXXVI, da
Constituição da República.
E haveria, ademais, ofensa à isonomia tributária (art. 150, II), à
medida que o § único do art. 4º estabelece distinção entre os atuais inativos “e
ainda com diferenças de tratamento conforme se trate de servidores estaduais,
distritais ou municipais, ou de servidores federais” (fls. 07).
A eminente Relatora, Min. ELLEN GRACIE, julgou procedente a
ação, para reconhecer a inconstitucionalidade, por ver, na hipótese, “contribuição
despida de causa eficiente, posto que não corresponde à necessária contrapartida
de novo benefício” (art. 195, § 5º), além de a norma insultar a isonomia (art. 150,
II), “porque discrimina indevidamente entre contribuintes em condição idêntica”, e
configurar bitributação em relação ao imposto sobre a renda, “tendo por fato
gerador a própria percepção dos mesmos proventos e pensões” (art. 154, I).
O Min. JOAQUIM BARBOSA votou pela improcedência,
sustentando que “o princípio dos direitos adquiridos, do mesmo modo que outros
princípios constitucionais, admite ponderação ou confrontação com outros valores
igualmente protegidos pela nossa Constituição”, e que se estaria “diante de
princípios constitucionais relativos, que admitem ponderação com outros
princípios, desse confronto podendo resultar o afastamento pontual de um deles.”
O Min. CARLOS BRITTO acompanhou a Min. Relatora na
conclusão, com invocar, em síntese, fundamento diverso:
“De tudo quanto foi exposto, é de se
concluir que os proventos da aposentadoria e
eventuais pensões se constituem em direito
subjetivo do servidor público ou seu
dependente, quando for o caso, desde que
preenchidos os requisitos constitucionais.
Noutros termos, a partir do momento que o
servidor público passa a preencher as
condições de gozo do benefício, já não poderá,
por efeito de nenhum ato da ordem legislativa
(art. 59), ser compelido a contribuir para o
sistema previdenciário: nem por determinação
legal, nem por imposição de Emenda
Constitucional.”
Para melhor análise do caso, pedi vistas dos autos.
2. Por dar resposta à causa, parto da necessidade metodológica de
perquirir a natureza jurídica da contribuição.
Salvas raras vozes hoje dissonantes sobre o caráter tributário das
contribuições sociais como gênero e das previdenciárias como espécie1, pode
dizer-se assentada e concorde a postura da doutrina e, sobretudo, desta Corte em
qualificá-las como verdadeiros tributos (RE nº 146.733, rel. Min. MOREIRA
ALVES, RTJ 143/684; RE nº 158.577, rel. Min. CELSO DE MELLO, RTJ
149/654), sujeitos a regime constitucional específico2, assim porque disciplinadas
as contribuições no capítulo concernente ao sistema tributário, sob referência
1 “com a Constituição de 1988, raras são as vozes que sustentam o caráter não-tributário de tais
exações. É o caso, a exemplificar, de Edvaldo Brito, Marco Aurélio Greco, Wladimir Novaes
Martinez, Aurélio Pitanga Seixas Filho, Hamilton Dias de Souza, e Valdir de Oliveira Rocha”
(OCTAVIO CAMPOS FISHER. A contribuição ao PIS. São Paulo: Dialética, 1999. p. 67).
2 “Este debate quanto à natureza jurídica das contribuições não é, porém, essencial à análise da
figura... Se as contribuições forem tributos, nem por isso seu regime constitucional será idêntico ao
tributário, porque várias diferenças resultam do exame da CF-88; se elas não forem tributos, nem
por isso deixarão de ter em comum como eles a característica de serem exigências patrimoniais
constitucionalmente previstas e admitidas, estando ambas as figuras submetidas a algumas das
limitações ao poder de tributar.Portanto, centrar um debate na temática da natureza jurídica não é
absolutamente indispensável” (MARCO AURÉLIO GRECO. Contribuições (uma figura “sui
generis”). São Paulo: Dialética, 2000. p. 74).
expressa aos art. 146, III (normas gerais em matéria tributária) e 150, I e III
(princípios da legalidade, irretroatividade e anterioridade), como porque
corresponderiam à noção constitucional de tributo construída mediante técnica de
comparação com figuras afins3.
Admitida, pois, como suposto metodológico indiscutível, a
natureza tributária das contribuições, toda a divergência teórica reduz-se-lhes à
classificação no quadro dos tributos e, nisto, enquanto parte da doutrina sustenta
que não constituiriam espécie autônoma, senão exigências patrimoniais que ora
se revestem das características de impostos, ora assumem os contornos de taxas,
segundo a materialidade dos fatos geradores4, outra corrente lhes adjudica
autonomia conceitual por conta do assento constitucional das finalidades e da
destinação do produto da arrecadação5.
3 ROQUE ANTÔNIO CARRAZZA propõe uma definição de tributo formulada a partir do cotejo de
figuras afins no texto constitucional (“desapropriação, requisição, serviço militar, pena privativa de
liberdade, perdimento de bens, serviço eleitoral, serviço do Júri, pena pecuniária, etc”.): “tributo, ao
lume de nosso Estatuto Magno, é a relação jurídica que se estabelece entre o Fisco e o
contribuinte (pessoa colhida pelo direito positivo), tendo por base a lei, em moeda, igualitária e
decorrente de um fato lícito qualquer” (Curso de Direito Constitucional Tributário. 19ª ed., 2ª
tiragem. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 352).
4 “Paulo de Barros Carvalho, Américo L. Masset Lacombe, Antônio Sampaio Dória, Alberto Xavier,
José Roberto Vieira, Elisabeth Nazar Carrazza, Roberto Catalano Botelho Ferraz, Heron Arzua,
Ramiro Heise, Luiz Emygdio F. da Rosa Jr. e Régis F. de Oliveira e Estevão Horvath sustentam,
por exemplo, que as contribuições especiais não são espécies tributárias autônomas, porque
podem ser reduzidas ora aos impostos, ora às taxas” (OCTAVIO CAMPOS FISCHER, A
contribuição ao PIS. Op. cit. p. 71).
5 “Outros, a exemplo de Hugo de Brito Machado, Celso Ribeiro Bastos, Cláudio Santos, Antônio
Carlos Rodrigues do Amaral, José Eduardo Soares de Melo, Luciano Amaro, Zelmo Denari, Célio
de Freitas Batalha e Bernardo Ribeiro de Moraes, sustentam que as contribuições especiais são
espécies autônomas e distintas dos impostos, das taxas e da contribuição de melhoria,
basicamente, porque têm no elemento “destinação” a sua peculiar característica, como diz Marçal
Justen Filho.
Mas começa a surgir nova safra de autores que, seguindo os passos da doutrina estrangeira e
as lições de Geraldo Ataliba, entendem que, ao lado dos impostos e das taxas, estão as
contribuições, dentre as quais a contribuição de melhoria é a espécie mais típica. Esta é a linha de
pensamento que parece ter sido seguida por Rubens Gomes de Souza, Souto Maior Borges e
Marçal Justen Filho, quando da ordem jurídica anterior, e, agora, por Misabel Derzi, Diva Malerbi,
Sacha Calmon Navarro Coelho, Susy Gomes Hoffmann e Luís Fernando de Souza Neves”
(OCTAVIO CAMPOS FISHER. op. cit., p. 71).
Mas, independentemente da sua classificação dogmática como
espécie autônoma, ou como subespécie de imposto ou de taxa, não há nenhuma
dúvida de que as contribuições são tributos que obedecem a regime jurídico
próprio, e cuja propriedade vem da destinação constitucional das receitas e da
submissão às finalidades específicas que lhes impõe o art. 149 da Constituição
Federal:
“Art. 149. Compete exclusivamente à
União instituir contribuições sociais, de
intervenção no domínio econômico e de
interesse das categorias profissionais ou
econômicas, como instrumento de sua atuação
nas respectivas áreas, observado o disposto
nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem
prejuízo do previsto no art. 195, § 6 º
relativamente às contribuições a que alude o
dispositivo.”
Desse texto vê-se claro que as contribuições podem instituídas
pela União (e também pelos Estados e Municípios, na forma do § 1º) como
instrumento de atuação na área social (a), de intervenção no domínio econômico
(b) e no interesse de categorias profissionais ou econômicas (c). Ou seja, a
Constituição predefine-lhes, de modo expresso e categórico, a competência, as
finalidades e o destino da arrecadação. A respeito, observa MARCO AURÉLIO
GRECO:
“As contribuições são diferentes de
impostos e taxas porque partem de um conceito
básico diverso. Ainda que tenham natureza
tributária, isto não lhes retira esta
diferença. Enquanto o imposto apóia-se no
poder de império (o casus necessitatis), ou
seja, o Estado precisa de determinado montante
em dinheiro para atender às despesas relativas
ao exercício de suas funções e, para tanto,
exerce (nos limites da Constituição) seu poder
de império sobre os contribuintes, nas taxas o
conceito básico que as informa não é o do puro
império, mas o de benefício (que, segundo
alguns é formulado a partir de uma noção de
“contraprestação” que seria ínsita à figura).
Por sua vez, nas contribuições o
conceito básico não é o poder de império do
Estado, nem o benefício que o indivíduo vai
obter diretamente de uma atividade do Estado
(nem necessariamente o seu custo), mas sim o
conceito de solidariedade em relação aos
demais integrantes de um grupo social ou
econômico, em função de certa finalidade. Em
certa medida, esta visão tripartite encontra
semelhança com o conceito de exigências
gerais, preferenciais e associativas a que se
refere Kruse”6
Interessam-nos, no caso, as contribuições sociais, concebidas
como instrumento de atuação do Estado no campo da chamada seguridade social.
3. A seguridade social “compreende um conjunto integrado de ações
de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os
direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (art. 194, caput, da
Constituição da República).
É organizada pelo poder público com base nos princípios
constantes do § único do art. 194, que são:
“I- universalidade da cobertura e do
atendimento;
II – uniformidade e equivalência dos
benefícios e serviços às populações urbanas e
rurais;
6 Contribuições. op.cit., p. 83.
III- seletividade e distributividade
na prestação dos benefícios e serviços;
IV – irredutibilidade do valor dos
benefícios;
V – equidade na forma de participação
no custeio;
VI – diversidade da base de
financiamento;
VII – caráter democrático e
descentralizado da administração, mediante a
gestão quadripartite, com participação dos
trabalhadores, dos empregadores, dos
aposentados e do Governo nos órgãos
colegiados.”
E, por força do disposto no art. 195, com a redação da época da
edição da EC nº 41/20037, a atuação estatal nas áreas da saúde, previdência e
assistência social, cujos direitos formam o conteúdo objetivo da seguridade social,
é custeada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei,
mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais, verbis:
“I – do empregador, da empresa e da
entidade a ela equiparada na forma da lei,
incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais
rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a
qualquer título, à pessoa física que lhe
preste serviço, mesmo sem vínculo
empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
c) o lucro;
II – do trabalhador e dos demais
segurados da previdência social, não incidindo
contribuição sobre aposentadoria e pensão
concedidas pelo regime geral de previdência
social de que trata o art. 201;
7 A EC nº 42/2003 inseriu o inciso IV no art. 195, com a previsão de instituição de contribuição
cobrada “do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.”
III – sobre a receita de concursos de
prognósticos.”
4. A Emenda Constitucional nº 41/2003, no alterar o alcance do art.
40, entrando a exigir contribuição aos servidores inativos (art. 4º), retira seu
fundamento de validade à previsão do art. 195, II, alargando seu raio de incidência
por meio da instituição de contribuição destinada à previdência social.
Institui-se aí contribuição previdenciária, pertencente à classe das
contribuições para a seguridade social, que, seria bom insistir, têm natureza
tributária incontroversa, não obstante submissas a particular regime jurídicoconstitucional.
Esta qualificação é, aliás, admitida e adotada pelos requerentes
mesmos (fls. 5 e ss), bem como pelos ilustres signatários dos pareceres que
instruem a inicial (fls. 68, 69 e ss).
5. Como tributos, que são, não há como nem por onde opor-lhes, no
caso, a garantia constitucional outorgada ao “direito adquirido” (art. 5º, XXXVI),
para fundar pretensão de se eximir ao pagamento devido por incidência da norma
sobre fatos posteriores ao início de sua vigência.
O art. 5º, XXXVI, ao prescrever que “a lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, protege, em homenagem ao
princípio fundamental de resguardo da confiança dos cidadãos perante a
legislação, enquanto postulado do Estado de Direito, os titulares dessas situações
jurídico-subjetivas consolidadas contra a produção de efeitos normativos gravosos
que, não fosse tal garantia, poderiam advir-lhes da aplicação da lei nova sobre
fatos jurídicos de todo realizados antes do seu início de vigência.
6. Mas o direito adquirido ou exaurido, não precisaria dizê-lo, só se
caracteriza como situação tutelada, invulnerável à eficácia de lei nova, quando
haja norma jurídica que o contemple como tal no segundo membro de sua
estrutura lingüística (proposição normativa), como conseqüência jurídica da
perfeita realização histórica (fattispecie concreta) do fato hipotético previsto, como
tipo (fattispecie abstrata), no primeiro membro da proposição normativa.
Talvez conviesse recordar ao propósito, conquanto em esquema
simplificado, que toda norma jurídica prática, cuja vocação está em induzir
comportamento, prevê, na primeira cláusula de sua formulação lingüística,
enunciados em termos típicos mas complexos, fato ou fatos de possível
ocorrência histórica (fattispecie abstrata), e liga à sua realização completa no
mundo físico (fattispecie concreta), por imputação ideal (causalidade normativa),
na segunda cláusula, a produção de certo efeito ou efeitos jurídicos, redutíveis, de
regra, às categorias conceituais de obrigações ou de direitos subjetivos.
De modo que, reproduzido na realidade, em toda a sua inteireza,
com a ocorrência do fato, o modelo ou tipo normativo, descrito como hipotético na
primeira cláusula, dá-se, no mundo jurídico, o fenômeno chamado de incidência
da norma sobre o fato (ou subsunção do fato à norma), mediante o qual o fato
realizado se jurisdiciza e, fazendo-se jurídico, dá origem, por suposição, ao
nascimento de direito subjetivo, isto é, direito reconhecido a titular ou titulares
personalizados (com adjetivo possessivo). Daí afirmar-se:
“Inexiste direito subjetivo sem norma
incidente sobre fato do homem ou sobre o homem
como fato: sobre seu mero existir ou sobre
conduta sua. O direito subjetivo é efeito de
fato jurídico, ou de fato que se jurisdicizou:
situa-se no lado da relação, que é efeito.
Isso quer nos direitos subjetivos absolutos,
privados ou públicos, quer nos direitos
subjetivos relativos”.8
Ora, e isso é observação radical e decisiva, não se manifesta,
intui, nem descobre, expressa ou sistemática, nenhuma norma jurídica que, no
segundo membro de sua proposição, impute, associado, ou não, a outra
circunstância típica elementar, ao ato e à condição jurídico-subjetiva da
aposentadoria de servidor público, o efeito pontual de lhe gerar direito subjetivo
como poder de subtrair ad aeternum a percepção dos respectivos proventos à
incidência de lei tributária ulterior ou anterior. Noutras palavras, não há, em nosso
ordenamento, nenhuma norma jurídica válida que, como efeito específico do fato
jurídico da aposentadoria, lhe imunize os proventos, de modo absoluto, à
tributação de ordem constitucional, qualquer que seja a modalidade do tributo
eleito. Donde, tampouco poderia encontrar-se, com esse alcance, direito subjetivo
que, adquirido no ato de aposentamento do servidor público, o alforriasse à
exigência constitucional de contribuição social incidente sobre os proventos da
inatividade.
Que a condição de aposentadoria, ou inatividade, represente
situação jurídico-subjetiva sedimentada, que, regulando-se por normas jurídicas
vigentes à data de sua perfeição, não pode atingida, no núcleo substantivo desse
estado pessoal, por lei superveniente, incapaz de prejudicar os correspondentes
8 LOURIVAL VILANOVA. Causalidade e Relação no Direito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1989. p.
146, nº 2. Grifos nossos e do original.
direitos adquiridos, é coisa óbvia, que ninguém discute. Mas não menos óbvio,
posto que o discutam alguns, é que, no rol dos direitos subjetivos inerentes à
situação de servidor inativo, não consta o de imunidade tributária absoluta dos
proventos correlatos.
Nem se pode desconsiderar que, em matéria tributária, por
expressa disposição constitucional, a norma que institua ou majore tributo
somente pode incidir sobre fatos posteriores à sua entrada em vigor. Logo, fatos
que, ajustando-se ao modelo normativo, poderiam ser tidos por geradores, mas
que precederam à data de início de vigência da EC nº 41, não são por esta
alcançados, não apenas em virtude daquela garantia genérica de direito
intertemporal, mas também por obra da irretroatividade específica da lei tributária,
objeto da norma do art. 150, III, a, da Constituição da República, e de referência
do art. 149, caput:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras
garantias asseguradas ao contribuinte, é
vedado à União, aos Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios:
(...)
III – cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores
ocorridos antes do início da vigência da lei
que os houver instituído ou aumentado;”
Na espécie, o fato gerador da contribuição previdenciária dos
inativos é a percepção de “proventos de aposentadorias e pensões”, conforme
dispõe o art. 4º, § único, da EC nº 41/2003. Mas, alegando estarem sob o pálio da
garantia constitucional do direito adquirido, os requerentes pretendem que esse
cânone da Emenda não se aplique tampouco aos fatos geradores futuros.
Não lhes vale nem aproveita, no entanto, a garantia que invocam.
É que, reduzida sua pretensão à última significação jurídica, pedem o
reconhecimento de autêntica imunidade tributária absoluta, pelo só fato de já
estarem aposentados à data de início de vigência da EC nº 41/2003.
Ora, vista como fato jurídico, a aposentadoria não guarda de per si
tal virtude, pois imunidade tributária depende sempre de previsão constitucional,
que com essa latitude não existe para o caso. Antes, a EC nº 41/2003 subjugou,
às claras, os proventos dos servidores inativos ao âmbito de incidência da
contribuição previdencial.
7. A relação jurídico-tributária baseia-se no poder de império do
Estado e legitima-se pela competência que a este, em qualquer das três
encarnações federativas, lhe atribui a Constituição. Em terminologia clássica, é
relação jurídica ex lege e, como tal, sua instituição e modificação (majoração,
extinção, etc.) dependem da existência de lei, que seja reverente aos estritos
desígnios e limites constitucionais.
O art. 150, III, a, da Constituição da República, como se viu,
prescreve que a lei tributária que institui tributo só pode apanhar fatos geradores
ocorridos após seu início de vigência. Donde, e esta é conseqüência também
oriunda do princípio constitucional da legalidade administrativa (art. 37, caput),
uma vez dado o fato nela previsto como hipótese, exsurge ipso facto o poder
jurídico de lhe exigir o pagamento, ou, em termos invertidos, a obrigação de o
pagar, por força da subsunção do fato à norma, ou, o que dá no mesmo, da
incidência desta sobre aquele, salvos os casos expressamente excluídos do
âmbito de tal efeito, por força da previsão de imunidade ou de isenção, por
exemplo.
Exercida a competência, dentro dos limites constitucionais, a
pessoa cuja condição é alcançada pela norma instituidora torna-se sujeito passivo
na relação jurídico-tributária, sem que desta posição obrigacional o livre situação
jurídica anterior. A lei tributária aplica-se aos fatos jurídicos ocorridos sob seu
império (art. 105 do Código Tributário Nacional), observado o princípio da
anterioridade (art. 150, III, b e c, e art. 195, § 6º, da Constituição da República),
cujo período, no caso, é de 90 dias.
8. Por resumir, o ponto de referência para aplicação da norma
tributária é o fato gerador, segundo a terminologia do Código Tributário Nacional,
ou, como também o denomina a doutrina, o fato imponível9, ou ainda fato jurídico
tributário10. Ou seja, é sempre o fato a que, previsto no primeiro membro da
proposição normativa, esta imputa, no segundo, o efeito jurídico da exigibilidade
do tributo.
Já o relembrou a Corte.
Ao apreciar a questão da aplicabilidade do Decreto federal nº
1.343/94, que aumentou a alíquota do imposto de importação, quanto aos
9 GERALDO ATALIBA. Hipótese de Incidência Tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros. 2003. p.
66.
10 PAULO DE BARROS CARVALHO. Curso de Direito Tributário. 15ª ed. São Paulo: Saraiva.
2003. p. 244.
contratos celebrados antes de sua vigência, o Plenário fixou, na decisão do RE nº
225.602 (Rel. Min. CARLOS VELLOSO), o entendimento de que o referencial
para a aplicação da lei tributária é só o fato tido pela legislação como fato gerador,
e não, os fatos ou atos jurídicos a ele anteriores ou dele preparatórios:
“Divirjo, com a devida vênia, também
aqui, do acórdão recorrido.
Está no acórdão:
“(...)
Sem falar, ainda, que o Decreto não
poderia atingir relações jurídicas de
importação já consolidadas. Isto porque o fato
gerador do II, ainda que só se perfaça com a
entrada da mercadoria no território nacional,
tem a sua formação iniciada desde o momento em
que se entabulou a compra da mercadoria que se
está importando. Como observa o mestre Hugo
Machado, “a entrada da mercadoria no
território nacional não pode ser vista como
fato inteiramente isolado, sob pena de negarse
a finalidade do princípio da
irretroatividade das leis como manifestação do
princípio da segurança jurídica. A entrada da
mercadoria no território nacional na verdade é
fato que se encarta em conjunto de outros
fatos, que não podem ser ignorados. Assim,
para os fins de direito intertemporal, é
relevante a data em que esse conjunto de fatos
começou a se formar, representando a
consolidação de uma situação que se pode
considerar incorporada ao patrimônio do
contribuinte. Se este já comprou as
mercadorias que está importando, ou de
qualquer modo vinculou-se a deveres jurídicos
cujo inadimplemento lhe impõe ônus
economicamente significativo, tem-se
consolidada uma situação que não admite
mudança no regime jurídico da importação, pena
de se ter violado o princípio da
irretroatividade das leis” (in Curso de
Direito Tributário, Ed. Malheiros, 9ª ed.,
pág. 208).
(...)
Mas o que deve ser considerado é que a
obrigação tributária principal surge com a
ocorrência do fato gerador (CTN, art. 113,
§1º). Importa verificar, portanto, no caso, se
o decreto majoritário veio a lume antes ou
depois da ocorrência do fato gerador. O que a
Constituição exige, no art. 150, III, a, é que
a lei que institua ou que majore tributos seja
anterior ao fato gerador. É isto o que está no
citado dispositivo constitucional – art. 150,
III, ª
(...)
Assim posta a questão, e considerando
que o decreto que majorou as alíquotas é
anterior à ocorrência do fato gerador, força é
concluir que o acórdão recorrido não deu boa
aplicação ao art. 150, III, a, da
Constituição”11 (Grifos nossos. No mesmo sentido, cf.
SS nº 775-AgRg, DJ de 23.02.96, e SS nº 819-AgRg, DJ de
13.06.97, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE).
Em síntese, tampouco deste segundo ângulo depara-se ofensa à
garantia constitucional do direito adquirido, pois se cuida de tributo que, na
modalidade de contribuição previdenciária, é só exigível em relação a fatos
geradores ocorridos após a data da publicação da EC nº 41/2003, observados os
princípios constitucionais da irretroatividade e da anterioridade (art. 150, III, a, e
art. 195, § 6º). E não custa tornar a advertir: uma coisa é a aposentadoria em si,
enquanto fonte e conjunto de direitos subjetivos intangíveis; outra, a tributação
sobre valores recebidos a título de proventos da aposentadoria.
9. Quanto à irredutibilidade do valor dos proventos, invocada pelos
requerentes como outro óbice à sujeição dos servidores inativos, basta avivar-lhes
a aturada posição da Corte de que a cláusula constitucional de irredutibilidade da
11 Cf. Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 178/428-440.
remuneração dos servidores públicos não se estende aos tributos, porque não
implica imunidade tributária:
“Nem se diga que a instituição e a
majoração da contribuição de seguridade social
transgrediriam a garantia constitucional da
irredutibilidade da remuneração dos servidores
públicos.
É que – como se sabe – o subsídio e os
vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos
públicos, embora irredutíveis, expõem-se, no
entanto, à incidência dos tributos em geral
(alcançadas, desse modo, as contribuições para
a seguridade social), mesmo porque, em tema de
tributação, há que se ter presente a cláusula
inscrita no art. 37, e no art. 150, II, ambos
da Constituição.
Na realidade, a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal – especialmente
quanto a garantia da irredutibilidade de
vencimentos representava prerrogativa
exclusiva dos magistrado – sempre se orientou
no sentido de reconhecer a plena legitimidade
constitucional da incidência das contribuições
previdenciárias (RTJ 83/74 – RTJ 109/244).
Mais recentemente, o Plenário do
Supremo Tribunal Federal, ao examinar essa
específica questão em face da majoração das
alíquotas referentes à contribuição para a
seguridade social incidente sobre a
remuneração mensal do servidor público federal
em atividade, repeliu a argüição de ofensa à
cláusula constitucional da irredutibilidade,
nos termos assim expostos no voto vencedor do
eminente Min. MARCO AURÉLIO, Relator da ADI
790-DF (RTJ 147/921, 925):
“Da irredutibilidade dos vencimentos.
Também aqui não se tem como cogitar da transgressão ao artigo
37, inciso XV, da Constituição Federal, no que majoradas as alíquotas
da contribuição social. No próprio dispositivo em que se diz da
intangibilidade dos vencimentos registra-se também a circunstância de
a remuneração (gênero) estar sujeita ao teor não só dos artigos 37,
incisos XI e XII, 153, III, e 153, § 2º, i, como também do artigo 150,
inciso II e, neste último, tem-se a previsão constitucional sobre a
incidência dos tributos, ficando alcançadas, assim, as contribuições
sociais” (ADI nº 2.010, Rel. Min. CELSO DE MELLO. Grifos
originais).
Não precisa, ademais, grande esforço por ver logo que outra coisa
levaria a enxergar, no restrito comando da irredutibilidade, obstáculo
intransponível à exigência de contribuição, não só aos inativos, mas também aos
servidores em atividade, e, o que é não menos conspícua demasia, proibição de
qualquer tributo que tome por base de cálculo o valor da remuneração paga aos
funcionários públicos! O excesso da conclusão desnuda todo o excesso da
premissa.
Nem quadra falar, a rigor, em “redução de benefícios”, sobretudo
em relação aos inativados antes do advento da Emenda nº 41/2003, porque, sob o
regime anterior, receberiam mais do que os servidores da ativa, pois não se
assujeitariam à contribuição previdenciária por estes paga. A respeito, notou a
“Exposição de Motivos” da proposta da Emenda: “trata-se de uma situação ímpar,
sem paralelo no resto do mundo nem qualquer conexão com princípios
previdenciários e de política social: pagar-se mais para os aposentados em
relação àqueles que ainda permanecem em atividade” (fls. 219).
10. Alegam ainda os requerentes que, se se admitisse contribuição
previdenciária devida pelos aposentados a título de tributo, sua instituição seria
inconstitucional por retomar como fato gerador a percepção de proventos,
travestindo-se, com bis in idem, de imposto sobre a renda, sem guardar os
princípios da isonomia, da generalidade e da universalidade.
O argumento não esconde petição de princípio.
A identificação conceptual de cada tributo dá-se, em regra, à vista
da conjunção do fato gerador e da base de cálculo12, mas, em relação às
contribuições, devem ponderados também os fatores discretivos constitucionais da
finalidade da instituição e da destinação das receitas.
O fato gerador e a base de cálculo não bastam para identificar e
discernir as contribuições, as quais, como já acentuamos, ex vi das regras
conformadoras do regime constitucional próprio, inscritas nos arts. 149 e 195,
caracterizam-se sobretudo pela finalidade e destinação específicas, como salienta
EURICO MARCOS DINIZ DE SANTI:
“a classificação intrínseca dos
tributos não esgota o repertório de variáveis
do sistema constitucional tributário vigente.
Nele foram instaladas as seguintes
peculiaridades: (i) é vedada a vinculação de
receita de impostos [art. 167, IV, da CF/88],
(ii) as contribuições sociais, de intervenção
no domínio econômico e de interesse de
categorias profissionais ou econômicas, têm
sua destinação vinculada aos órgãos atuantes
nas respectivas áreas [artigos 149, 195, 212,
§ 5º, etc.] e (iii) os empréstimos
compulsórios, sobre serem vinculados aos
motivos que justificaram sua edição, hão de
ser, obrigatoriamente, restituídos ao
contribuinte.”13
Se se atém ao fato gerador e à base de cálculo da contribuição
previdenciária, esta aparece, deveras, como imposto, segundo a divisão
tradicional dos tributos, assim como aparece como imposto disfarçado a
12 GERALDO ATALIBA. Hipótese de incidência tributária . op. cit., p. 126 e ss.
13 As Classificações no sistema tributário brasileiro, in Justiça Tri
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