29/12/2008
Mercado dos precatórios avança no rastro da inadimplência de governos

O ESTADO DE S. PAULO - NACIONAL - 27/12/2008
Mercado dos precatórios avança no rastro da inadimplência de governos

Compram-se precatórios. Pagamento em dinheiro vivo e à vista, ou sinal a combinar e parcelas mensais e iguais, acrescidas de juros moratórios e mais correção monetária. Cada vez mais pujante e valorizado, esse é o mercado das dívidas governamentais.

É um negócio que ganha espaço no rastro de governos inadimplentes e que fazem da postergação do pagamento de dívidas arma poderosa contra credores agoniados, que chegaram ao limite do esgotamento nervoso.

De olho nesse filão, surgem em larga escala companhias que se especializam na aquisição de precatórios - títulos que a Justiça expede contra a Fazenda pública dos Estados e dos municípios, ou seja, dívidas resultantes de decisões judiciais.

Os precatórios já ganharam status de moeda - e de bom valor, porque estão a salvo da crise que assola os grandes investimentos nas maiores economias, uma vez que não pode ser decretada a insolvência do Estado.

Estima-se em R$ 100 bilhões a dívida dos precatórios em todo o Brasil - prefeituras e governos estaduais devem, não negam, mas demoram anos a fio para quitar seus débitos. Alegam dificuldades de arrecadação e caixa vazio.

À mercê da boa vontade de gestores públicos, e acuados pela angústia e pelas incertezas, muitos credores estão recorrendo deliberadamente ao comércio de títulos. Acreditam que é uma saída para o sufoco e uma oportunidade para resgatar ao menos uma parte do precatório - contra o qual não cabe mais apelação de sorte alguma, porque é decisão de mérito transitada em julgado.

Entidades de apoio aos credores e advogados do setor calculam que 25% do estoque de precatórios já tenham mudado de mãos, ou seja, um a cada quatro títulos foram vendidos.

João Guzzo, de 62 anos, foi coletor de impostos quase a vida toda na pacata Clementina, de 6 mil habitantes, a 40 quilômetros de Araçatuba (SP). Ele acaba de vender seu precatório e está muito satisfeito. Guzzo cedeu o crédito porque acredita que só o receberia daqui a uns 10 anos. "A firma que comprou deu uma importância na hora e parcelou o resto em seis vezes. Valeu mesmo a pena."

DESÁGIO
Mas a venda desses papéis a terceiros nem sempre é vantajosa. E pode ser arriscada. Muitos se arrependeram. A taxa de deságio, imposta pelo comprador, bate em média nos 70%, muitas vezes vai aos 80%. A diferença, a favor de quem se dispõe a vender, é que o comprador, dependendo do valor do desembolso, o faz no ato e com dinheiro vivo.

"O calote é flagrante e leva à incerteza jurídica total, cria insegurança e fomenta esse tipo de mercado", protesta Flávio Brando, presidente da Comissão de Precatórios da Ordem dos Advogados do Brasil, em São Paulo.

A venda do precatório é direito do credor. Do outro lado do balcão fica o comprador, atento à morosidade da administração pública e aos anseios do dono do precatório.

Os precatórios têm duas origens: o de natureza alimentar e o indenizatório. Os credores alimentares são uma multidão sem fim de servidores públicos - sobretudo aposentados e pensionistas - que foram à Justiça em busca de diferenças salariais que receberam com atraso ou que nunca viram incorporadas a seus contracheques. Os titulares dos indenizatórios são geralmente empresários que sofreram desapropriações ou que travam demandas de ordem tributária contra o Estado. Estes, no entanto, têm uma relação à parte com o poder público porque uma emenda à Constituição, a 33, lhes garante o recebimento, parcelado ano a ano, em 10 parcelas, 8 delas já honradas.

É longa e angustiante a espera dos precatórios, que se arrasta pelo tempo. Milhares de cidadãos contra as cordas, endividados, envelhecidos, aguardam pelo dinheiro. Em São Paulo, estima-se em 450 mil os credores alimentares. Muitos sucumbiram nessa fila. Advogados que atuam no ramo estimam que até 70 mil tenham morrido sem ver a cor do dinheiro.

Os escritórios que adquirem os precatórios sustentam que o mercado opera à luz do Direito, com base em contratos que têm respaldo em normas que regem o dia-a-dia das relações entre as partes. A cessão do crédito tem previsão no artigo 42, parágrafo 1º, do Código de Processo Civil. Não há nada de ilegal nesse toma-lá-dá-cá.

"Criamos uma segunda alternativa, séria e real, para pensionistas e advogados", destaca a direção da Noblle Administradora de Bens e Créditos. Apontada como a maior no setor, na praça desde 2004, a Noblle já registrou mais de 3 mil operações.

Magistrados advertem para risco de arrependimento
O avanço exacerbado do mercado de precatórios tem provocado desconfianças e preocupações entre magistrados. Eles advertem para negócios mal feitos e o arrependimento tardio de credores que descobrem que se desfizeram de créditos bem mais alentados e que já estavam próximos de serem, enfim, contemplados pela Fazenda.

O Tribunal de Justiça de São Paulo constatou crescimento vertiginoso de ações propostas por quem vendeu o precatório e depois se deu conta de que fez mau negócio. O TJ emitiu comunicado público: "Diante da grande quantidade de ações anulatórias de contrato de cessão de créditos, comunicadas nos processos de execução, o TJ tomou conhecimento de que alguns escritórios de advocacia estão comprando os créditos por valor bem abaixo do real."

Desembargadores sugerem aos donos dos precatórios que, antes de assinar a transferência de crédito, busquem dados atualizados sobre o valor que têm a receber, em que ordem da fila estão seus títulos e pesquisem cuidadosamente quem são os compradores.

"Desesperados, muitos credores estão recorrendo a esse mercado para alienar seus créditos", anota Ricardo Luiz Marçal Ferreira, presidente do Movimento dos Advogados em Defesa dos Credores Alimentares do Poder Público. Para ele, o mercado dos precatórios não é um segmento que oferece riscos porque o Estado não pode ter sua insolvência decretada.

Marçal calcula que cerca de 60 mil titulares de precatórios morreram na fila. "Com essa crise do mercado acionário, quem pode esperar está de olho nos precatórios, que são títulos seguros, corrigidos com 6% de juros ao ano, mais a correção monetária pelo INPC."

MITO
A Procuradoria-Geral do Estado (PGE), que orienta e defende o governo de São Paulo nas demandas judiciais, informou que a dívida dos precatórios soma R$ 18,1 bilhões - R$ 11,6 bilhões relativos a alimentares e R$ 6, 5 bilhões a não-alimentares. Em 2008, até novembro, São Paulo pagou R$ 295,3 milhões - dos quais, R$ 283,6 milhões referentes a alimentares e R$ 11,7 milhões aos não-alimentares.

"É um mito o Estado que não paga", reage Marcelo de Aquino, procurador-geral-adjunto do Estado. Ele destaca que, em 2007, São Paulo pagou R$ 2 bilhões em precatórios. "É uma estação de Metrô em um ano", compara Aquino. "Como dizer que o Estado não paga? São Paulo paga, sim."

Sobre o troca-troca dos precatórios, a PGE sustenta que, quanto ao negócio jurídico em si, nada tem a opor, "na medida em que as cessões constituem negócios cujos vícios e inexatidões só afetam as próprias partes". Mas a PGE é rigorosa num ponto crucial da demanda: não reconhece a substituição processual do credor. "Em não se tratando de substituição legal, mas voluntária, a Fazenda se opõe e impugna a sua realização."

Fausto Macedo

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