31/08/2004
CONTRIBUIÇÃO DOS INATIVOS - VOTO DO MINISTRO EROS GRAU

18/08/2004 TRIBUNAL PLENO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.105-8 DISTRITO FEDERAL
V O T O
O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: Preliminarmente, acompanho o
voto da eminente Relatora Ellen Gracie no que tange à legitimidade
ativa e ad causam da Associação Nacional dos Membros do Ministério
Público - CONAMP.
2. No mérito, examinarei inicialmente as razões, articuladas
na ADIN, segundo as quais o artigo 4o da EC 41/03 violaria o
princípio da segurança jurídica, afrontando o disposto no artigo 5o,
inciso XXXVI, na proteção do direito adquirido e do ato jurídico
perfeito, bem assim o inciso IV do § 4o do artigo 60 da Constituição
do Brasil.
Quanto a este último, lembro que a interpretação de um
texto normativo demanda duas verificações: [i] a quem ele se dirige
e [ii] qual o comportamento estabelecido. Identifica-se, assim, o
destinatário/sujeito e a ação/objeto1. O inciso IV do § 4o do artigo
60 da Constituição do Brasil veicula regra dirigida ao Poder
Constituinte derivado, que é quem não deverá deliberar sobre
proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e as
garantias individuais. A ação/objeto é não abolir, vale dizer não
excluir do texto da Constituição qualquer dos direitos ou garantias
individuais, sejam os enunciados pelo artigo 5o, sejam outros mais,
1 Cf. BOBBIO, Teoria generale del diritto, Torino, Giappichelli,
1.993, p. 146.
ADI 3.105 / DF
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como tais qualificados mercê do que o Ministro Carlos Ayres Britto2
chama de "interpretação generosa ou ampliativa" das cláusulas
pétreas.
Aqui a regra não incide, pois a emenda constitucional
promulgada não afetou o texto do artigo 5o, inciso XXXVI da
Constituição do Brasil.
O que se alega é que o artigo 4o da EC 41/03 violaria o
princípio da segurança jurídica, afrontando o disposto no artigo 5o,
inciso XXXVI, na proteção do direito adquirido e do ato jurídico
perfeito. Cuida-se de alegada violação a direito, não de sua
abolição [= exclusão] do texto da Constituição, no sentido acima
indicado.
Em breve nota, observo que, para KELSEN3, há
interpretação autêntica [= criadora de direito] tanto no processo de
interpretação/aplicação do direito, todo ele, inclusive a
Constituição, empreendido pelo Poder Judiciário, quanto no curso do
processo legislativo --- quando o legislador interpreta a
Constituição.
São diversos os discursos pronunciados em um e outro
caso. Nesta ocasião, sem que se torne necessário penetrarmos o
debate a respeito do controle da constitucionalidade das emendas
constitucionais desde o § 4o do artigo 60 da Constituição do Brasil,
âmbito do segundo discurso, cumpre considerarmos o preceito
veiculado pelo artigo 4o da EC 41/03 em face do artigo 5o, inciso
XXXVI da Constituição.
2 O regime jurídico das emendas à Constituição, tese, PUC/SP, São
Paulo, 1.999.
3 Teoria pura do direito, 4a edição, trad. de João Baptista Machado,
Armênio Amado, Coimbra, 1.976, pp. 464 e ss.
ADI 3.105 / DF
3
Tenho assim por superado, no caso, o questionamento do
preceito desde a perspectiva do § 4o do artigo 60 da Constituição do
Brasil.
3. - Passo a tratar do argumento segundo o qual o artigo 4o
da EC 41/03 afrontaria o disposto no artigo 5o, inciso XXXVI da
Constituição.
O tema dos direitos adquiridos vem desafiando a doutrina
e a jurisprudência, muitos suportando contratempos por esquecimento
de lições dos mais velhos.
Aqui neste Tribunal deixou-se bem claro, em inúmeros
votos do Ministro OROSIMBO NONATO4, que a Constituição de 1.946, ao
contrário da 1.891, não estabeleceu a proibição de leis retroativas,
bastando-se em afirmar que a lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Essas
observações cabem qual uma luva à Constituição de 1.988. Os mais
atentos sabem que no Brasil, na vigência da Constituição de 1.988,
não há vedação da retroatividade das leis senão quando a retroação
de uma delas prejudique direito adquirido, ato jurídico perfeito ou
coisa julgada.
Transpondo para o momento de hoje a objetividade de
FRANCISCO CAMPOS5, perfeitamente adequada à Constituição de 1.988:
“A Constituição não determina, com efeito, que a lei não deve ser
retroativa. O que ela prescreve é que a lei não poderá retroagir em
prejuízo de direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa
julgada”.
4 RE 18.269, [DJ 03.12.1953].
5 Direito Administrativo, vol. II, Freitas Bastos S/A, Rio de
Janeiro, 1.958, p. 12.
ADI 3.105 / DF
4
Em outros termos: no Brasil, sob a égide da Constituição
de 1.988, a lei é, em princípio, retroativa. Apenas não poderá
[prossigo a transcrever FRANCISCO CAMPOS6]
“alterar as situações jurídicas definitivamente constituídas,
retirando do patrimônio público ou privado direito que a ele se
tenha incorporado em virtude de fato ou de ato jurídico, ao qual a
lei do tempo do seu evento ou da sua realização atribuísse a fôrça
de gerar aquêle efeito”.
Adote-se a lição de REYNALDO PORCHAT7, professor da minha
Faculdade de Direito:
“Quando, ao executar-se uma lei nova qualquer,
depara-se um direito adquirido que possa ser lesado, a
lei não tem applicação ao caso, porque a retroactividade
seria injusta. Quando não se encontra direito adquirido,
applica-se a lei, mesmo retroactivamente, porque a
retroactividade é justa”.
E prossegue o mestre das Arcadas afirmando que é pelo
reconhecimento da existência ou inexistência do direito adquirido
que se conclui pelo efeito não retroativo ou retroativo de uma lei
nova8-9.
Fala-se em retroatividade justa e injusta, diz OROSIMBO
NONATO10:
"[o] limite da aplicação da lei nova é o direito
adquirido. Se retroatividade é a violação de direitos
adquiridos, o desrespeito aos atos praticados em
observância da lei antiga, a destruição da coisa julgada,
deve ser inteiramente abolida".
6 Idem, ibidem.
7 Da retroactividade das leis civis, Duprat & Comp., São Paulo,
1.909, p. 8.
8 Ob. cit., p. 9.
9 Veja-se também, do mesmo autor, O Código Civil e a retroactividade,
republicado in Revista dos Tribunais, 810/755-760.
10 RE 163989/CE [DJ 28.06.1951]; também, v.g., RMS 2726/DF [DJ
01.09.1955], MS 1447/DF [DJ 01.11.1951].
ADI 3.105 / DF
5
Por isso mesmo --- ainda OROSIMBO NONATO11 --- há autores
que “nem chamam retroatividade à retroprojeção da lei sem ofensa do
direito adquirido, vale dizer, à retroatividade justa"; pois então a
lei se aplica não ao passado, mas a conseqüências novas de relações
anteriores; apenas haveria retroatividade quando a lei atingisse
direitos adquiridos. Referindo-me ao critério proposto por MATOS
PEIXOTO12, de graduação por intensidade da retroatividade, nas
hipóteses de retroatividade média e de retroatividade mínima não
haveria retroatividade.
4. - Permito-me, além disso, neste passo, breve digressão.
A tutela estabelecida pelo artigo 5o, XXXVI da Constituição do Brasil
colhe situações que se manifestam em três planos: o da existência, o
da validade e o da eficácia13.
11 RE 18269, cit.
12 Limite temporal da lei, in RT 173/459, pp. 468-469, citado também
pelo eminente Ministro Moreira Alves em voto na ADIN n. 493 [RTJ
143/724, pp. 744-745].
13 Ao cuidar do ato jurídico perfeito, o preceito constitucional está
a referir situações existentes e válidas [mesmo que ainda não
eficazes] --- exemplificando: o testamento formalizado no regime da
lei anterior, enquanto vivo o testador, e, de forma geral, os
negócios jurídicos sujeitos a condição suspensiva. Nesses casos,
verificados os pressupostos da existência e os elementos da
validade, as situações mantêm-se íntegras, a salvo de eventuais
modificações, no direito positivo, que incidam sobre tais
pressupostos e elementos. Não se trata, então, de direito adquirido,
mas de ato jurídico perfeito --- os contemplados pelo testamento
feito no regime da lei anterior [enquanto vivo o testador], ou os
contratantes que se vincularam sob condição suspensiva [enquanto
esta não se verifica], não são titulares de "direito adquirido".
Resulta nítida, destarte, a distinção entre direito adquirido e ato
jurídico perfeito, o que evita a confusão entre ambos, quando o
primeiro é submetido ao segundo e vice-versa. Pois é certo existir
direito adquirido que não se funda em ato jurídico perfeito [os
direitos do nascituro, v.g.] e ato jurídico perfeito que não implica
ADI 3.105 / DF
6
No que concerne ao plano da eficácia, a salvaguarda
constitucional respeita ao direito adquirido, cujo conceito
contempla situações de direito nas quais se verificam os efeitos da
situação jurídica. Aqui é necessário apartarmos facta praeterita dos
facta futura.
O que, no entanto, interessa bem de perto considerarmos é
a facta pendentia, que encerra o momento presente; nele é que cumpre
averiguarmos os efeitos da lei.
5. - Valho-me, em linhas gerais, da exposição de PONTES DE
MIRANDA14, passando porém à margem de disputas teóricas.
O direito funda-se, irradia-se e constitui-se a partir de fator da
vontade, da natureza ou da verificação de deveres sancionados por
ações que ocorrem em determinado momento. Os efeitos decorrentes do
direito assim identificado é que se impõe preservar. Esses efeitos
dependem da lei que vige no momento em que o direito ingressa no
plano da existência ou em que se verifica determinada condição ou
termo.
Considerada a dimensão temporal do fenômeno jurídico,
tais efeitos manifestam-se em três níveis: os efeitos produzidos no
passado; os efeitos que serão produzidos no futuro, em situações nas
quais a eficácia seja condicionada ou a termo; e os que se produzem
de forma sucessiva, no fluir do tempo.
Nos dois primeiros casos verificam-se pontos distintos,
tanto ao nível da existência quanto no da eficácia. No último,
apresenta-se uma composição linear que principia com a existência
válida da situação considerada, de pronto surtindo os efeitos a ela
direito adquirido [justamente os negócios sujeitos a condição
suspensiva e o testamento, em ambos os casos enquanto,
respectivamente, não verificada a condição, ou vivo o testador].
14 Comentários à Constituição de 1.967 com a Emenda n. 1 de 1.969, 2ª
ed., vol. V, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1.969.
ADI 3.105 / DF
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inerentes ou dela decorrentes, até sua extinção. É esse o traço do
elemento sucessivo, inerente aos efeitos que se devem produzir.
No último caso, os efeitos produzidos são de natureza
sucessiva, isto é, algo lineal, em vez de punctual, na lição de
PONTES DE MIRANDA15, o que permite possamos identificar com precisão
o tempo em que se produzem.
A lei aplica-se imediatamente aos efeitos que se
manifestam nesse período. Trata-se, então, da imediatidade da lei16-
17.
Aplicando-se a lei imediatamente, não afetará as
condições de validade de qualquer ato passado, nem alterará as
conseqüências de um direito já realizado18. Não obstante, aplicar-seá
às situações em curso, vale dizer, atingirá os efeitos [=
direitos] que se verifiquem de forma sucessiva.
6. – Há mais, porém, a dizer.
Em estudo percuciente e instigador, TEORI ALBINO
ZAVASCKI19, considerando duas decisões à primeira vista
contraditórias desta Corte --- ADI 49320 e MS 21.21621 [indexador com
base na variação da Taxa Referencial - TR e revogação do artigo 1o da
Lei 7.830/89 pela Lei 8.030/90] --- demonstra que na primeira delas
prevaleceu um direito previsto em cláusula de contrato contra a lei
nova, ao passo que, na segunda, prevaleceu lei nova contra o que
dispunha outra lei, a revogada. Daí a proposta de que a matéria do
15 - Ob. cit., p. 82.
16 Cf. PONTES DE MIRANDA, ob. cit., p. 80.
17 Vide PAUL ROUBIER, Le droit transitoire, 2éme edition, Dalloz et
Sirey, Paris, 1.960, pp.292 e ss.
18 CARLOS MAXIMILIANO, Direito intertemporal ou Teoria da
retroatividade das leis, Freitas Bastos, Rio, 1.946, p.22.
19 Planos econômicos, direito adquirido e FGTS, in RTDP 22/64 e ss.
20 RTJ 143/724.
21 RTJ 134/1.112.
ADI 3.105 / DF
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direito adquirido seja ponderada mediante a consideração da natureza
--- caráter, diria eu --- do ato que deu origem à situação jurídica
de que se trate.
Situação jurídica, como a toma LAUBADÈRE22 --- inspirado em DUGUIT23 -
-- é o conjunto de direitos e obrigações de que uma pessoa pode ser
titular. Elas podem ser de dois tipos:
[i] as situações jurídicas gerais e impessoais --- por
vezes denominadas estatutárias ou objetivas, legais ou
regulamentares --- cujo conteúdo é necessariamente o mesmo para
todos os indivíduos que dela são titulares;
[ii] situações individuais ou subjetivas, cujo conteúdo é
individualmente determinado e pode variar de um para outro titular;
aí o caso, v.g., de um credor, um devedor, um locatário, em que o
conteúdo da situação é específico para cada qual, modelando-se pelo
ato individual.
Por certo que as situações individuais ou subjetivas
jamais se encontram em estado puro, visto que, a par dos aspectos
subjetivos individuais oriundos do ato individual que as cria,
inevitavelmente comportam alguns elementos fixados por disposições
gerais24.
22 Traité élémentaire de droit administratif, 4éme. ed. LGDJ, Paris,
1.967, p. 17.
23 Traité de droit constitutionnel, 2éme edition, t. I, Ancienne
Librairie Fontemoing & Cie., Paris, 1.921, p. 254-255.
24 No original de LAUBADÈRE: “[l]es situations individuelles ne se
rencontrent jamais à l’état pur. Elles sont toujours em réalité des
situations plus ou moins mixtes, c’èst-à-dire qu’elles comportent
toujours certaisn elements determines par des dispositions générales
et imperatives de la loi” [ob. cit., p. 17.].
ADI 3.105 / DF
9
A exposição de LAUBADÈRE é sintetizada por CELSO ANTONIO
BANDEIRA DE MELLO25, que enfatiza a circunstância de essa distinção,
como sustenta o administrativista francês, dizer respeito ao
problema da modificabilidade das situações jurídicas:
“[e]nquanto nas situações gerais as alterações se
aplicam de plano, alcançando os que nela estão
investidos, as situações individuais e subjetivas
permanecem intangíveis, intactas”26.
A distinção fornece o critério para solução do problema
da aplicação da não-retroatividade das leis27.
No mesmo sentido, aliás, JOÃO BAPTISTA MACHADO28, de cuja
exposição se vale GILMAR FERREIRA MENDES29, apartando o “estatuto
contratual” [ou “pessoal”] do “estatuto legal” [ou “real”].
7. - Isso explica aparente, mas apenas aparente, contradição
entre as posições assumidas pelos Ministros MOREIRA ALVES e CELSO DE
MELLO no julgamento da ADI 493 e do MS 21.216.
No primeiro caso considerou-se o ato jurídico perfeito em
situação individual, subjetiva ou contratual; no segundo, o direito
25 Ato Administrativo e Direito dos Administrados, Editora Revista
dos Tribunais, São Paulo, 1.981, pp. 106-111.
26 Ob. cit., p. 107. No original de LAUBADÈRE: “Au contraire, les
situations individuelles et subjectives ne sont pas touchées par les
modifications des lois et règlements parce que leur contenu n’a pas
été determine par ceux-ci. Elles sont, dit-on parfois, ‘intangibles’
” [cit., p. 18].
27 “On voit que la distinction fournit ainsi le critère technique de
solution du problème de l’application des lois dans le temps,
autrement dit du problème de la non-rétroactivité des lois” [idem,
ibidem].
28 Introdução ao direito e ao discurso legitimador, 12a reimpressão,
Coimbra, 2.000, p. 234 e ss.
29 “Anotações sobre o princípio do direito adquirido tendo em vista a
aplicação do novo Código Civil”, in Aspectos controvertidos do novo
Código Civil, [coordenadores Arruda Alvim et alii], Editora Revista
dos Tribunais, São Paulo, 2.003, p.235.
ADI 3.105 / DF
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adquirido em situação geral, estatutária, institucional, afastandose
a incidência do preceito constitucional inscrito no art. 5º,
XXXVI.
O que é relevante para os fatos, como enfatiza OSWALDO
ARANHA BANDEIRA DE MELLO, é a imediata alterabilidade das situações
gerais e a intangibilidade das situações individuais30.
8. - A ponderação dos critérios acima explorados --- facta
praeterita/facta futura/facta pendentia e situações
individuais/situações estatutárias ou institucionais --- permitirá a
superação da complexidade da matéria.
Tratando do tema, em determinado ponto de sua exposição
indaga CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO31:
"Teria sentido alguém pretender se opor à alteração
das regras do imposto de renda, argüindo direito
adquirido àquelas normas que vigiam à época em que se
tornou contribuinte pela primeira vez? Teria sentido
invocar direito adquirido para obstar a aplicação de
novas regras concernentes ao serviço militar,
argumentando que o regime vigorante era mais suave quando
o convocado completou 18 anos? Acaso poderia um
funcionário, em nome do direito adquirido ou do ato
jurídico perfeito, garantir para si a sobrevivência das
regras funcionais vigentes ao tempo em que ingressou no
serviço público, quais as concernentes às licenças,
adicionais etc.? Seria viável alguém invocar direito
adquirido a divorciar-se, se a legislação posterior a seu
casamento viesse a extinguir este instituto jurídico? Ou,
30 “As situações estatutárias se estendem a número indeterminado de
sujeitos e são mutáveis segundo a alteração das regras jurídicas que
a regulam. Já as situações individuais se referem apenas a
especificados sujeitos, de modo determinado, e são inalteráveis por
terceiros ou por uma das partes sem a concordância da outra,
obedientes às regras que permitiram a sua criação.” [Princípios
gerais de direito administrativo, 2ª ed., Forense, Rio de Janeiro,
1.979, p. 425].
31 Ob. cit., p. 110.
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reversamente, teria direito adquirido à indissolubilidade
de vínculo se lei nova estabelecer o divórcio?".
Min. Nelson Jobim: A citação do Professor Celso Antônio é
do parecerista ou do escritor?
Min. Eros Grau: Está no ‘Ato administrativo e direito dos
administrados’. Não no parecer.
Min. Nelson Jobim: Obrigado.
Min. Carlos Britto: É obra acadêmica.
Min. Eros Grau: A situação dos aposentados, agora digo
eu, a situação dos aposentados e pensionistas é institucional e, de
resto, os efeitos que no caso cumpre considerarmos verificam-se de
forma sucessiva. O direito adquirido que afirmam os autores seria
direito à "imutabilidade de um certo regime jurídico".
O artigo 4o da EC 41/03 aplica-se imediatamente sobre tais efeitos.
Retorno a CELSO ANTÔNIO32:
“É nítido o discrímen entre ambas as espécies de
situações jurídicas e igualmente nítida a imediata
aplicação das modificações que incidam sobre as situações
gerais, ao contrário do que se passa com as subjetivas”.
9. - Essa conclusão é inteiramente coerente com o
entendimento reiteradamente adotado por este Tribunal, no sentido de
que não há direito adquirido a regime jurídico33.
Por todos, o que afirmou MOREIRA ALVES no RE 226.85534:
32 Ob. cit., p. 111.
33 RE 177.072, in RTJ 183/323; 178.802, in RTJ 143/293; 99/1.267;
88/651 RE 99.522, in RDA 153/110-113; RE 92.638, in RDA 145/56-61;
RE 185.966; RE 146.749, in RTJ 158/228; RE 82.881, in RTJ 79/268; RE
99.592, in RTJ 108/382; RE 99.594, in RTJ 108/785; RE 99.955, in RTJ
116/1.065; RE 199.753.
34 RTJ 174/942.
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12
“… em se tratando de direito público com referência
a regime jurídico estatutário, não há direito adquirido a
esse regime jurídico, como sempre sustentou esta Corte, e
isso porque pode ele ser alterado ao arbítrio do
legislador. Não fora isso, e todos os que ingressarem no
serviço público sob a égide de lei que estabeleça que, se
vierem a completar trinta e cinco anos, terão direito à
aposentadoria, esse direito para eles será um direito
adquirido sob a condição de completarem esses 35 anos de
serviço público, o que jamais alguém sustentou”.
Permito-me retornar, neste ponto, à proficiente exposição
de GILMAR FERREIRA MENDES35, acima mencionada, onde colho a
observação de que a proteção ao direito adquirido e ao ato jurídico
perfeito não obstam a modificação ou a supressão de determinado
instituto jurídico.
Na ementa do RE 226.85536 se pode ler, com todas as
letras:
“(...) O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
(FGTS), ao contrário do que sucede com as cadernetas de
poupança, não tem natureza contratual, mas, sim,
estatutária, por decorrer da Lei e por ela ser
disciplinado. Assim, é de aplicar-se a ele a firme
jurisprudência desta Corte no sentido de que não há
direito adquirido a regime jurídico”.
De mais a mais, não cabe a alusão, no caso, a ato
jurídico perfeito, porque na hipótese trata-se de efeitos, ou seja,
de direitos irradiados de uma situação institucional, na qual o
papel da vontade é nenhum.
Aposentados e pensionistas são titulares de direito
adquirido a perceber aposentadorias e pensões, mas não ao regime
35 Ob. cit., p. 239.
36 RTJ 174/916.
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jurídico de umas e outras [RE 92.232-6, rel. Min. MOREIRA ALVES – DJ
de 09.05.80].
Não há afronta, no caso, ao disposto no artigo 5o, XXXVI da
Constituição do Brasil.
10. – Note-se que existem precedentes específicos a serem
considerados.
A incidência de contribuição para o custeio da
previdência social sobre os proventos dos servidores públicos
inativos foi apreciada, em sede de medidas cautelares, nas ADIs
1.441 [RTJ 166/890] e 1.430 [RTJ 164/98]. O Pleno desta Corte as
indeferiu.
11. – No que concerne ao argumento da irredutibilidade dos
proventos, acompanho o voto da eminente Relatora, na trilha também
do RE 70.009 (Rel. p/ o acórdão o Min. Xavier de Albuquerque,
Plenário, julg. em 29.11.1973) e da ADIMC 2.010 (rel. Min. Celso de
Mello, Plenário, julgada em 11.03.2004).
Afasto também a alegada ofensa ao artigo 194, IV da
Constituição do Brasil.
12. – O fato é que as situações jurídicas dos inativos,
aposentados e pensionistas são dotadas de caráter institucional. Os
direitos e obrigações de que são titulares não decorrem de ato de
vontade, porém da lei.
Permito-me recorrer, neste passo, ao voto do Ministro
CELSO DE MELLO no RE 116.683:
“A Administração Pública, observados os limites
ditados pela Constituição Federal, atua de modo
discricionário ao instituir o regime jurídico de seus
agentes e ao elaborar novos Planos de Carreira, não
ADI 3.105 / DF
14
podendo o servidor a ela estatutariamente vinculado
invocar direito adquirido para reivindicar enquadramento
diverso daquele determinado pelo Poder Público, com
fundamento em norma de caráter legal.”
13. - Passo a cogitar do argumento construído em torno da
caracterização da contribuição previdenciária como tributo.
Essa contribuição é, efetivamente, um tributo, o que
ninguém contesta [v.g., RE 146.733, RTJ 143/684]. Aliás, no
julgamento da Medida Cautelar na ADI 2.01037, assentou-se que “[n]ão
assiste ao contribuinte o direito de opor, ao Poder Público,
pretensão que vise a obstar o aumento de tributos --- a cujo
conceito se subsumem as contribuições de seguridade social (RTJ
143/648 e RTJ 149/654)”.
Tributo aplica-se imediatamente, como acaba de demonstrar
o Min. CEZAR PELUSO.
Há aqui, no entanto, dois aspectos a serem considerados.
14. – O primeiro diz com seu fato gerador, a percepção de uma
determinada parcela dos proventos e pensões (cf. o parágrafo único
do artigo 4o da EC 41/03).
O parecer acostado aos autos, do eminente Professor JOSÉ
AFONSO DA SILVA, afirma tratar-se, no caso, de uma contribuição sem
causa [finalidade], incidente sobre certa categoria de pessoas, do
que decorreria a sua caracterização como “tributo de capitação”. Não
haveria, na contribuição, relação de causa ou fato gerador material.
Isso, porém, não ocorre. A contribuição não é devida
simplesmente à existência da pessoa. Tem como fato gerador, como se
lê no parágrafo único do artigo 4o da EC 41/03, a percepção de
determinada parcela de proventos e pensões. Daí, com as devidas
37 Relator o Ministro Celso de Mello (trecho extraído da decisão
liminar, DJ 12.04.2002).
ADI 3.105 / DF
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vênias ao eminente mestre, não ser correta a afirmação de que se
tributa aposentados por serem aposentados. A ser assim diríamos que
a contribuição previdenciária é cobrada do empregado porque ele é
empregado; que é cobrada da empresa porque ela é empresa...
Estaríamos --- estamos --- diante de um jogo de palavras.
A tributação se dá em decorrência da verificação do seu
fato gerador.
15. - Ademais, tenho como indispensável, no caso, não
confundirmos a causa --- e “causa” é vocábulo utilizado por JOSÉ
AFONSO DA SILVA não no sentido que assume na teoria do negócio
jurídico, mas como razão de ser, finalidade, à moda de von JHERING38
--- não confundirmos a causa da contribuição com o seu fato gerador.
A causa [= razão de ser da contribuição], segundo JOSÉ AFONSO DA
SILVA, seria a referibilidade direta da contribuição a uma atuação
concreta-atual ou potencial do Estado. Após a aposentadoria não
haveria mais razão de ser [= causa] para a contribuição. Não
obstante, nas situações institucionais, a causa é moldada,
conformada pela lei, reside na lei --- no caso, por emenda à
Constituição, nessa emenda constitucional. E razão de ser para ela
há, como será visto mais adiante.
O que explica a confusão entre o fato gerador e a causa
[= finalidade] da contribuição é a circunstância de o primeiro ser o
provento ou a pensão e a segunda ser o benefício --- assim designado
pela Lei n. 8.213/91 --- gênero no qual incluídas as aposentadorias
e pensões.
Isso compreendido, poderíamos dizer que, no caso dos
inativos, o fato gerador é a percepção do benefício; a causa [=
razão de ser da contribuição], o provento ou a pensão. Mas isso não
38 Der Zweck im Recht, Druck und Verlag von Britkopf e Härtel, Erster
Band, zweite umgearbeitete Auflage, Leipzig, 1.984, p. VIII.
ADI 3.105 / DF
16
autoriza a conclusão de que, alternativamente, ou não existe a
causa, ou não existe o fato gerador. A emenda constitucional
poderia, como o fez, eleger a percepção do provento ou da pensão
como hipótese de incidência da contribuição.
16. - De outra banda, o fato gerador material efetivamente
existindo, sustenta-se que não se teria, então, uma contribuição
previdenciária, mas um bis in idem de caráter discriminatório.
Anoto parenteticamente o fato de, equivocadamente, indicar-se como
preceito constitucional violado o artigo 155, § 2o, I, que trata de
outra matéria.
Retomando porém o fio da minha exposição, lembro, quanto
ao bis in idem, a observação do Min. ALIOMAR BALEEIRO (RE 77.131, DJ
06.11.1974]:
“... no Brasil, o bis in idem, no sentido de
decretação do mesmo imposto duas vezes pelo governo
competente, pode ser constitucional em muitos casos,
ainda que represente, quase sempre, uma política
legislativa má”39.
Não há óbice jurídico, porém, à opção por essa política.
O que o artigo 154, I da Constituição proíbe é a instituição, pela
União, mediante lei complementar --- não por emenda constitucional -
-- no exercício de competência residual, de impostos cumulativos e
que tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos
39 Note-se que à época do referido acórdão, o art. 18, § 5º, da
Constituição vigente correspondia ao atual art. 154, I da
Constituição do Brasil, a saber: “A União poderá, desde que não
tenham base de cálculo e fato gerador idênticos aos dos previstos
nesta Constituição instituir outros impostos, além dos mencionados
nos artigos 21 e 22 e que não sejam da competência tributária
privativa dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, assim
como transferir-lhes o exercício da competência residual em relação
a impostos, cuja incidência seja definida em lei federal.”
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discriminados na Constituição. Ora, imposto instituído por emenda
constitucional é imposto discriminado na Constituição.
A admitir-se que a Emenda Constitucional 41/03 contempla
bis in idem, nada mais estaria a fazer senão a insistir em política
de incidência da própria contribuição previdenciária e do imposto de
renda sobre o lucro do empregador (artigo 195, I, c e 153, III da
Constituição do Brasil).
17. – Afasto também a alegação de confisco [artigo 150, IV da
Constituição], aliás não demonstrada.
A entender-se que os inativos estariam gravados por um
tributo confiscatório seríamos forçados a sustentar que os
servidores ativos estariam também onerados pelo mesmo efeito, visto
serem contribuintes da contribuição previdenciária...
18. – O que há, na hipótese, é relação institucional,
adstrita a normas cogentes de Direito Administrativo, sendo
perfeitamente possível a revisão de suas regras, a fim de
resguardar-se o interesse público e a continuidade da prestação por
parte do Estado.
É no quadro desta relação que haveria de ser considerada
a referibilidade direta da contribuição a uma atuação concreta-atual
ou potencial do Estado.
19. – O segundo aspecto diz com a afirmação de que, embora a
contribuição seja um tributo, sua incidência sobre aposentadorias e
pensões importaria quebra de sinalagma.
Não é porém correta a suposição de que a relação
previdenciária seja dotada de caráter sinalagmático.
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O sinalagma é, na síntese de TRABUCCHI40, o liame
recíproco que existe em alguns contratos, entre a prestação e a
contraprestação (obligatio ultro citroque).
Contratos sinalagmáticos caracterizam-se pela
circunstância de a prestação de cada uma das partes encontrar sua
justificativa e seu fundamento na prestação da contraparte [do ut
des, do ut facias, facio ut facias, facio ut des]41.
Essa ligação funcional entre as duas prestações --- que
assume relevância tanto no momento da conclusão do contrato
[sinalagma genético] quanto no momento da sua execução [sinalagma
funcional]42 --- é típica dos contratos onerosos43, nos quais, na
dicção de MOTA PINTO44, “cada uma das prestações ou atribuições
patrimoniais é o correspectivo (a contrapartida) da outra, pelo que,
se cada parte obtém da outra uma vantagem, está a pagá-la com um
sacrifício que é visto pelos sujeitos do negócio como
correspondente”.
Mas o sinalagma não significa real e objetiva
equivalência entre prestação e contraprestação, sendo possível ---
ainda a dicção de MOTA PINTO45 --- a “falta de equivalência objetiva
40 Istituzioni di diritto civile, 37ª ed., Padova, CEDAM, 1.997, p.
667).
41 PAOLO GALLO, Diritto Privato, 3ª ed., Torino, Giappichelli, 2.002,
364 e s.
42 Idem, ibidem.
43 Não obstante, como explica TRABUCCHI: “La distinzione tra
contratti unilaterali e corrispettivi non coincide con quella tra
contratti onerosi e contratti gratuiti (...). Tutti i contratti
corrispettivi sono onerosi, ma la proposizione inversa non vale,
perchè onerosi possono essere anche alcuni contratti unilaterali,
come il mutuo, il deposito, il mandato” [ob. cit., pp. 669-670
(negrito no original).
44 Teoria geral do direito civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1.976, p.
279.
45 Idem, ibidem.
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ou usual das atribuições patrimoniais”. E prossegue46: “no negócio
oneroso as partes estão de acordo em que a vantagem que cada uma
visa obter é contrabalançada por um sacrifício que está numa relação
de estrita causalidade com aquela vantagem”.
Efetivamente --- como observa SERPA LOPES47 --- "nos
contratos bilaterais, o que prepondera é a vinculação de uma
prestação a outra, característico do sinalagma, genético para uns
(vinculação originária das prestações), funcional para outros
(vinculação na execução das obrigações)”.
Não há sinalagma no caso, visto inexistir, nele, relação
contratual, menos ainda contrato bilateral oneroso que o tenha
estabelecido.
20. – Pois é certo que o Estado, no caso da relação
previdenciária, encontra-se em situação de dever. Não é titular de
quaisquer direitos no bojo dessa relação, cujo outro pólo é ocupado
pelo aposentado ou pelo pensionista.
A relação previdenciária decorre da lei, sem querer [=
vontade] a caracterizá-la, ainda que nela sejam apontados traços
similares aos de um contrato. Mas não há sinala
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