INQUÉRITO 1.968-2 DISTRITO FEDERAL
V O T O – V I S T A
O SENHOR MINISTRO JOAQUIM BARBOSA: Sr. Presidente, pedi
vista dos presentes autos para meditar melhor sobre as questões
neles contidas.
Porém, antes mesmo de nos debruçarmos sobre elas, creio
que se faz necessário um breve retrospecto do feito.
A denúncia foi oferecida com base em procedimento administrativo instaurado a
partir de notitia criminis do Ministério da Saúde.
Imputa-se aos denunciados a autoria de crime de estelionato em prejuízo da União
(art. 171, § 3º, do Código Penal), uma vez que se teriam beneficiado economicamente de fraudes
perpetradas por médicos que trabalhavam na clínica de que os denunciados eram sócios, causando
dano ao erário da União.
Coube ao ministro Marco Aurélio a relatoria do feito.
Ao submeter o caso ao Plenário, o ministro relator votou pela rejeição da denúncia,
com o argumento de que inexiste justa causa, por falta de atribuição do Ministério Público para
instaurar e presidir “inquéritos criminais”.
Antecipando o seu voto, o ministro Nelson Jobim acompanhou o relator.
Pedi vista dos autos para fazer uma análise mais minuciosa do caso concreto, bem
como das teses em debate.
Preliminarmente, devo dizer que não vejo, na hipótese em análise, verdadeira
“investigação criminal” como ficou consignado no voto do ministro Marco Aurélio.
Tomo como ponto de partida o fato de que todas as peças
de investigação trazidas ao conhecimento do Ministério Público
Federal foram autuadas para averiguar possível prejuízo ao
patrimônio público (fls. 18).
Note-se que somente após longa apuração pelo próprio Ministério da Saúde
(apenso, volumes 01 a 10) encaminhou-se ao Ministério Público o material coletado. Trata-se
inequivocamente de notitia criminis.
Assim, com base nessa vasta documentação, o procurador oficiante requereu ao
Ministério da Saúde a designação de dois técnicos para proceder à análise dos documentos.
Designados esses técnicos, o representante do Ministério Público Federal formulou quesitos, tais
como: “quais foram as irregularidades apuradas?”; “qual foi o período investigado?; “o SUS deve
pagar pelo serviço prestado?”.
Não houve novas diligências para esclarecer outros fatos.
Ora, o que deve ser discutido é se a documentação levada ao conhecimento do
Ministério Público Federal, fruto de apuração integralmente conduzida pelo Ministério da Saúde,
serve ou não serve como justa causa para a denúncia em exame.
Mas, ainda que se considere como investigativa a atuação do Ministério Público
neste caso, creio que há fundamento constitucional sólido para embasá-la.
O fato objeto de investigação nestes autos (apuração de possíveis danos ao
patrimônio público) insere-se num domínio que reputo perfeito à demonstração da irrazoabilidade
da tese que sustenta a impossibilidade da investigação pelo Ministério Público. Aqui o fundamento
constitucional não é o art. 129, I, mas o art. 129, III da CF/88. Diz o dispositivo:
“Art. 129 – São funções institucionais do
Ministério Público:
III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a
proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos.”
Isso significa que o Ministério Público tem atribuição constitucional expressa
para instaurar procedimento investigativo acerca da matéria em exame.
O que autoriza o Ministério Público a investigar não é a
natureza do ato punitivo que pode resultar da investigação (sanção
administrativa, cível ou penal), mas, sim, o fato a ser apurado,
incidente sobre bens jurídicos cuja proteção a Constituição
explicitamente confiou ao Parquet.
A rigor, nesta como em diversas outras hipóteses, é quase impossível afirmar, a
priori, se se trata de crime, de ilícito cível ou de mera infração administrativa. Não raro, a devida
valoração do fato somente ocorrerá na sentença!
Note-se que não existe uma diferença ontológica entre o ilícito administrativo, o
civil e o penal. Essa diferença, quem a faz é o legislador, ao atribuir diferentes sanções para cada
ato jurídico (sendo a penal, subsidiária e a mais gravosa).
Assim, parece-me lícito afirmar que a investigação se legitima pelo fato
investigado, e não pela ponderação subjetiva acerca de qual será a responsabilidade do agente e
qual a natureza da ação a ser eventualmente proposta.
Em síntese, se o fato diz respeito a interesse difuso ou coletivo, o Ministério
Público pode instaurar procedimento administrativo, com base no art. 129, III, da Constituição
Federal.
Na prática, penso que é possível propor tanto ação civil pública com base em
inquérito policial quanto ação penal subsidiada em inquérito civil. Essa divisão entre civil e penal é
mera técnica de racionalização da atividade estatal. O que é de fato relevante é a obrigação
constitucional e legal a todos imposta de se conformar às regras jurídicas, indispensáveis a uma
convivência social harmônica.
Não quero com isso dizer que o Ministério Público possa presidir o inquérito
policial. Não. A própria denominação do procedimento (inquérito policial) afasta essa
possibilidade, indicando o monopólio da polícia para sua condução. Ocorre que a elucidação da
autoria e da materialidade das condutas criminosas não se esgota no âmbito do inquérito policial,
como todos sabemos. Em inúmeros domínios em que a ação fiscalizadora do Estado se faz presente,
o ilícito penal vem à tona exatamente no bojo de apurações efetivadas com propósitos cíveis.
Nesses casos, como em muitos outros, o desencadeamento da ação punitiva do Estado prescinde da
atuação da polícia.
Daí a irrazoabilidade da tese que postula o condicionamento, o aprisionamento da
atuação do Ministério Público à atuação da polícia, o que, sabidamente, não condiz com a
orientação da Constituição de 1988.
De fato, como bem lembram Lenio Streck e Luciano Feldens (Crime e
Constituição, Forense, 2003), uma das novidades mais alvissareiras da Constituição de 1988 foi a
criação de um Ministério Público independente do Poder Executivo, com garantias similares às do
Poder Judiciário e com a missão de guardar os interesses transindividuais da sociedade e do regime
democrático. Esse Ministério Público veio suceder um Ministério Público dependente do Poder
Executivo - e, por extensão, do poder político - e, como dizem Streck e Feldens, “repassador de
provas realizadas por uma polícia sem independência”.
Lembremos que esse novo Ministério Público constitui,
juntamente com a Justiça Eleitoral, uma das raras e inovadoras
instituições criadas pela Constituição de 1988 a despertar o
interesse e o respeito da comunidade jurídica internacional. Pois
bem. A essa instituição a Constituição conferiu a titularidade
exclusiva da ação penal pública e o controle da atividade
policial.
Note-se, por outro lado, que estamos diante de atividades que se enquadram
perfeitamente no rol das missões constitucionais normalmente confiadas ao ramo do poder que
representa a função executiva do Estado. De fato, a persecução criminal - creio que não há dúvidas
a esse respeito - constitui atividade ontologicamente associada à idéia de “fiel execução das leis”.
Assim é desde Locke e Montesquieu, passando-se pela experiência do primeiro país a dotar-se de
uma Constituição escrita, os Estados Unidos da América, cuja Carta de 1787 não deixa dúvidas
sobre o tema quando, em seu art. II, Seção 3, diz que ao presidente incumbe velar pela fiel execução
das leis.
Aliás, nos Estados Unidos, ninguém questiona ser a persecução criminal uma das
mais importantes atribuições do Executivo, controlada em caráter primário pelo presidente e
exercida no dia-a-dia pelo attorney general (procurador-geral ou ministro da Justiça), sob cujas
ordens e diretrizes funciona o FBI (Federal Bureau of Investigations), a polícia federal daquele país.
Toda ação da polícia federal americana segue guidelines (instruções) determinadas pelo
procurador-geral.
Mas mesmo nos Estados Unidos, com todo o rigor com que é concebida a noção de
rule of law e de fiel execução das leis, a aplicação da lei penal e a persecução criminal não ficaram
imunes a dificuldades ao longo do tempo. Essas dificuldades estiveram associadas à necessidade
indeclinável de conciliação entre o dever de executar as leis e punir os eventuais infratores, de um
lado, e, de outro, a obrigação constitucional de investigar, com o mesmo rigor, os membros do
próprio Poder Executivo, em suma, os membros do establishment político.
Tais dificuldades, como todos sabemos, após os
conhecidos episódios do caso “Watergate” - especialmente o chamado
“massacre do sábado à noite”, em que três procuradores foram
demitidos por um presidente que não queria se submeter ao dever
constitucional de conformar-se aos ditames legais -, levaram os
Estados Unidos a radicalizar na matéria e a criar a figura do
procurador independente, incumbido de investigar fatos específicos
nos quais estejam envolvidas pessoas que por sua posição
institucional possam exercer algum tipo de pressão na conduta das
investigações. Noutras palavras, para esses casos específicos, o
direito norte-americano inovou em relação à multicentenária teoria
da separação e divisão dos poderes, retirando do Executivo regular
a atividade persecutória criminal.
Pois bem. O direito brasileiro radicalizou ainda mais que o norte-americano. A
Constituição de 1988 instituiu, não para casos específicos e pontuais, mas em caráter permanente,
um órgão independente do Executivo e confiou-lhe a titularidade da ação penal, além de outras
atribuições de alta relevância que em outros sistemas constitucionais ficam a cargo de órgão de
persecução subordinado ao Executivo. De fato, nossa Constituição, inovando e destacando-se
sobremaneira das demais Constituições democráticas, optou por retirar essa função da esfera de
influência do chefe do Executivo e entregou-a a uma instituição nova, independente, sui generis,
com o claro intuito de deixar para trás as velhas práticas clientelistas e anti-democráticas que nos
marcaram no passado, à luz das quais a persecução criminal sempre passou ao largo das classes
sociais mais elevadas, do establishment político e econômico. A toda evidência, a Constituição não
quis fazer dessa instituição mais um órgão dotado de agentes com funções pomposas e títulos
sonantes, porém incumbido de um papel meramente decorativo, contemplativo, inerte. Não, não foi
essa a intenção do constituinte de 1988.
Mas é precisamente a isso que nos conduzirá, se
vencedora, a tese que postula a inviabilidade constitucional e
legal de investigação por membro do Ministério Público.
O que a Constituição e a teoria constitucional moderna
asseguram é que, sempre que o texto constitucional atribui uma
determinada missão a um órgão constitucional, há de se entender
que a esse órgão ou instituição são igualmente outorgados os meios
e instrumentos necessários ao desempenho dessa missão. Esse é, em
síntese, o significado da teoria dos poderes implícitos,
magistralmente sintetizada entre nós por Pinto Ferreira em seus
Comentários à Constituição Brasileira, vol. II, p. 132:
“As Constituições não procedem a enumerações exaustivas das
faculdades atribuídas aos poderes dos próprios Estados. Elas apenas enunciam os
lineamentos gerais das disposições legislativas e dos poderes, pois normalmente
cabe a cada órgão da soberania nacional o direito ao uso dos meios necessários à
consecução dos seus fins. São os chamados poderes implícitos.”
Concebida por John Marshall no célebre caso “McCulloch v. Maryland” e aplicada
durante quase dois séculos de prática constitucional, em áreas que vão do direito tributário ao
direito penal e administrativo, tal cláusula simboliza a busca incessante pela efetividade das normas
constitucionais. Nesse sentido, não me parece ocioso citar trecho dessa famosa decisão,
especialmente o ponto em que Marshall argumenta: “Ora, com largo fundamento se pode sustentar
que um Governo a quem se confiam poderes dessa amplitude, da execução correta dos quais tão
vitalmente dependem a felicidade e prosperidade da Nação, deve ter recebido também amplos
meios para os exercer. Dado o poder, é do interesse da Nação facilitar-lhe o exercício. Nunca se
poderia supor que fosse do seu interesse, ou estivesse no seu intuito embaraçar-lhe e tolher-se-lhe o
exercício, recusando-lhe para isso os mais adequados meios”.
Arthur Pinto de Lemos Júnior, em trabalho publicado na RT em 2002, menciona
com muita propriedade que a tese da aplicação da teoria dos poderes implícitos nessa matéria não
constitui novidade para esta Corte, visto que, por ocasião do julgamento da ADI 1.547, o
procurador-geral de Justiça do estado de São Paulo, Luiz Antonio Guimarães Marrey, sustentou
que:
“(...) nada impede – e, antes, tudo recomenda – que o titular da
ação penal se prepare para o exercício responsável da acusação. Como já se
observou, há nessa hipótese um poder implícito, inerente ao seu poder específico
papel na persecução penal: ninguém ignora que a lei quando confere a um Poder
ou órgão do Estado a competência para fazer algo, implicitamente lhe outorga o
uso dos meios idôneos. ‘It´s not denied that power given to the government imply
the ordinary means of execution’, escreve Franklin H. Cook, que acrescenta: ‘The
government which has a right to do an act, and has imposed on it the duty of
performing the act, must according to the dictates of reasons, be allowed to select
the means’.”
De fato, se a Lei Maior concedeu ao Ministério Público a função de dar início à
ação penal, sendo esta sua atividade-fim, implicitamente, por óbvio, concedeu-lhe também os meios
necessários para o alcance de seu objetivo, caso contrário seu encargo constitucional nem sempre
poderia ser cumprido.
Se houvesse a imperativa inércia do promotor de Justiça criminal e sua
impossibilidade de investigar os fatos, porquanto sempre na dependência do trabalho da polícia
judiciária, como poderia o Ministério Público cumprir sua função constitucional de “zelar pelo
efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados
na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia” como prescreve o art. 129, II,
da Carta Magna? Como poderia defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses
sociais e individuais indisponíveis, previstos no art. 127, caput, da mesma Constituição?
Ora, esses meios de ação foram expressamente conferidos ao Ministério Público,
tanto no plano constitucional, por força da própria natureza da função cuja titularidade lhe foi
outorgada, quanto no plano legal. Com efeito, o art. 129, IX, da Constituição diz que são funções
institucionais do Ministério Público “EXERCER OUTRAS FUNÇÕES QUE LHE FOREM
CONFERIDAS, DESDE QUE COMPATÍVEIS COM SUA FINALIDADE”. Não me parece
haver dúvidas de que a investigação da veracidade de uma notitia criminis que lhe chegue ao
conhecimento tem total pertinência com uma das mais importantes dentre as atribuições do
Ministério Público, que é o exercício da titularidade da ação penal. Não é por outra razão que a Lei
Complementar 75/1993, Lei Orgânica do Ministério Público da União, em seu art. 8º, V, estipula
que “para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos
procedimentos de sua competência, REALIZAR INSPEÇÕES E DILIGÊNCIAS
INVESTIGATÓRIAS”. Esse dispositivo, de clareza insuplantável, estabelece sem sombra de
dúvida a relação meio-fim a que faz alusão o art. 129, IX, da Constituição. Dispositivo com dizeres
similares é encontrado no art. 26 da Lei 8.625/1993, que disciplina a atuação dos ministérios
públicos estaduais.
Quanto ao suposto óbice do art. 144, § 1º, IV, da
Constituição, o qual para alguns teria estabelecido um monopólio
investigativo em prol da Polícia Federal, valho-me mais uma vez de
Strecker e Feldens, quando afirmam:
“Logicamente, ao referir-se à ‘exclusividade’ da Polícia Federal
para exercer funções ‘de polícia judiciária da União’, o que fez a Constituição foi,
tão-somente, delimitar as atribuições entre as diversas polícias (federal,
rodoviária, ferroviária, civil e militar), razão pela qual observou, para cada uma
delas, um parágrafo dentro do mesmo art. 144. Daí porque, se alguma conclusão
de caráter exclusivista pode-se retirar do dispositivo constitucional seria a de que
não cabe à Polícia Civil ‘apurar infrações penais contra a ordem política e social
ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades
autárquicas e empresas públicas’ (art. 144, 1º, I), pois que, no espectro da ‘polícia
judiciária’, tal atribuição está reservada à Polícia Federal.
Acaso concluíssemos distintamente, ou seja, no sentido do
‘monopólio investigativo’ da Polícia, teríamos de enfrentar importantes
indagações para as quais não visualizamos qualquer possibilidade de resposta
coerente com a tese restritiva.
Por exemplo: o que se passaria com as ‘diligências
investigatórias’ imprimidas pelos demais órgãos da administração (Poder
Executivo), os quais, conquanto não ostentem, ao contrário do Ministério Público,
finalidade dirigida à persecução penal, as realizam no escopo de fomentá-la? Bem
assim, o que ocorreria com as investigações criminais – que existem em
pluralidade – levadas a efeito no âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário?“
E eu pergunto: caso vencedora a tese do relator, que
destino será dado às complexas e sofisticadas estruturas
administrativas e investigativas criadas no âmbito do Executivo,
fora, portanto, das estruturas das polícias, numa tentativa de
aparelhamento mínimo do Estado para monitorar e coibir certas
práticas criminosas que a cada dia crescem em ousadia e
sofisticação, como os crimes de natureza financeira, especialmente
o de lavagem de dinheiro?
A tese da primazia policial em matéria de investigação criminal choca-se também
com outros aspectos da tradição jurídica brasileira. Tome-se, por exemplo, o direito administrativo,
especialmente no campo específico das relações entre o Estado e seus agentes. Ninguém tem dúvida
de que da relação entre a Administração e os agentes públicos decorrem três tipos distintos de
responsabilidade: a civil, a administrativa e a penal (art. 121 da Lei 8.112/1990).
Os arts. 143 e 144 da referida norma impõem a todas as autoridades que tiverem
ciência de irregularidade no serviço público a obrigatoriedade de promover a sua “apuração
imediata”, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar. É sabido que a constatação
da prática de diversos crimes, notadamente daqueles praticados contra a administração pública, dáse
justamente no bojo dos procedimentos administrativo disciplinares.
Indaga-se: passaremos doravante a considerar inválidas as condenações resultantes
de apurações levadas a efeito por autoridades administrativas em procedimentos investigatórios
administrativos de natureza disciplinar?
Há ainda um enorme rol de situações idênticas, ou seja,
de órgãos distintos da polícia judiciária que realizam
investigações, as quais, muitas vezes, terão conseqüências penais.
Cito alguns deles.
O Banco Central conta em sua estrutura com o Departamento de Combate a Ilícitos
Cambiais e Financeiros-DECIF, órgão diretamente vinculado à Diretoria de Fiscalização-DIFIS.
Por ele também são efetuadas diligências, as quais, além de servirem à instrução do procedimento
administrativo, têm como destinatário o Ministério Público, para que este atue na esfera criminal
contra os investigados. O Conselho de Coordenação de Atividades Financeiras igualmente realiza,
certo que a seu modo, atividade investigatória, e o faz atuando como “órgão do Governo,
responsável pela coordenação de ações voltadas ao combate à ‘lavagem’ de dinheiro”.
Tais exemplos, que não esgotam o rol de agentes e instituições legitimados a
apurar fatos mediata ou imediatamente relacionados com infrações penais deixam claro - e de forma
inequívoca - a ausência de exclusividade da polícia para a realização de tais “diligências
investigatórias”.
Sr. Presidente, uma das facetas mais marcantes da
jurisdição constitucional - e que a singulariza em face das outras
formas de jurisdição - é o componente político que lhe é ínsito.
Político, mas não no sentido vulgar, partidário, mas numa
compreensão que simbolize a atividade de velar pelo bem-estar na
polis, pela segurança dos cidadãos, pela paz social, em suma,
pelos destinos da nação. Noutras palavras, esse componente
político da jurisdição constitucional se materializa quando as
cortes, deixando temporariamente de lado a dogmática chã, que não
raro empobrece o debate verdadeiro das questões, toma decisões à
luz da realidade político-social concreta de cada país. Anoto, de
passagem, que as grandes cortes constitucionais assim procedem não
sem levar em conta o papel e a imagem que os respectivos países
gozam ou almejam gozar no cenário internacional.
Tenho dito em algumas oportunidades que a função básica
de uma corte constitucional é velar pela preservação de certos
equilíbrios.
Pois bem. Creio que essa visão se aplica ao presente
caso. Nitidamente estamos diante de uma situação em que cabe a
esta Suprema Corte estabelecer o ponto justo, o equilíbrio ideal
entre, de um lado, os direitos processuais das pessoas suspeitas
da prática de crime e, de outro, os interesses maiores da
sociedade, a segurança da população, o interesse em preservar o
patrimônio público contra a corrupção e em extirpar da cena
pública os indícios de penetração do crime organizado.
A Constituição de 1988, símbolo da inserção do nosso
país no concerto das nações democráticas, oferece aos suspeitos da
prática de crimes um rol de direitos, privilégios e prerrogativas
que nos coloca em pé de igualdade com as mais sólidas democracias
do planeta. Citem-se como exemplo o princípio da não-incriminação,
o da reserva legal e da irretroatividade da lei penal, o da
individualização da pena, o da amplitude da defesa etc. É
importante assinalar que todo esse arcabouço constitucional-penal
tem como primeiro objetivo a proteção do inocente. Aliás, essa
proteção reforçada do inocente faz com que o sistema feche até
mesmo os canais de acesso à mais segura e autêntica fonte de
apuração da verdade, isto é, o acusado, que tem para protegê-lo o
princípio da não-incriminação.
Assim deve ser, pois, como disse certa vez Learned Hand, grande jurista e
magistrado norte-americano, “no sistema criminal o acusado tem todas as vantagens”. (“Under our
criminal procedure the accused has every advantage. While the prosecution is held rigidly to the
charge, he need not disclose the barest outline of his defense. He is immune from question or
comment on his silence; he cannot be convicted when there is the least fair doubt in the minds of
any one of the twelve (...)”) (Learned Hand, in United States v. Garsson, 291 Fed. 646, 679,
S.D.N.Y., 1923, apud Stephen Saltzburg & Daniel J. Capra, American Criminal Procedure, Cases
and Commentaries, 5th ed., 1996, p. 767).
Mas, Sr. Presidente, proteção reforçada ao acusado não há de ter como
contrapartida a ineficácia dos mecanismos e instituições voltadas à apuração e à persecução das
atividades delituosas. A todas essas prerrogativas do cidadão acusado deve haver um contraponto,
sob pena de se criar um desequilíbrio em prol da criminalidade. É a velha antítese entre segurança
e liberdade. Explico-me, para me fazer devidamente compreendido: entendo que, paralelamente ao
fortalecimento dos direitos do cidadão, aí incluído o cidadão suspeito ou o já condenado ou em vias
de ser condenado, a Constituição há de fornecer ao Estado e aos seus órgãos de persecução criminal
os meios de cumprir suas missões constitucionais e legais com eficácia.
Neste ponto sirvo-me mais uma vez de notável jurista e magistrado do mundo
anglo-saxão, Lord Denning, que, em seu magistral The Due Process of Law, já dizia:
“Ela (a liberdade pessoal) há, é claro, de ser confrontada com a
segurança social, isto é, com a paz e a boa ordem da comunidade na qual vivemos.
A liberdade do homem justo não tem qualquer valor se ele pode ser vítima do
assassino ou do assaltante. Toda sociedade deve ter meios de se proteger dos
criminosos.”(No original: “It (personal freedom) must be matched, of course, with
social security, by which I mean, the peace and good order of the community in
which we live. The freedom of the just mand is worth little to him if he can be
preyed upon by the murderer or the thief. Every society must have means to protect
itself from marauders.”
(Lord Denning, The Due Process of Law, Butterworths, 1980, p. 101)
Em suma, compelir o Ministério Público a uma postura
meramente contemplativa seria, além de contrário à Constituição e
ao status constitucional que essa instituição passou a ter a
partir de 1988, desservir aos interesses mais elevados do país,
instituir um sistema de persecução penal de fachada, incompatível
com o visível amadurecimento cívico de nosso país e com a solidez
das nossas instituições democráticas.
Por fim, Sr. Presidente, creio ser importante assinalar
que a tese que veda qualquer tipo de investigação pelo Ministério
Público, além de ferir a Constituição e a lei complementar já
mencionada, não encontra sustentação nem mesmo no vetusto Código
de Processo Penal, que, em seu art. 4º, parágrafo único, diz o
seguinte:
“Art. 4º A polícia judiciária será exercida
pelas autoridades policiais no território de suas
respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das
infrações penais e da sua autoria.
Parágrafo único. A competência definida neste artigo não excluirá
a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.”
A JURISPRUDÊNCIA DO STF SOBRE A MATÉRIA
Embora desnecessário para o deslinde deste caso, faço um
breve retrospecto da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
sobre a questão levantada pelo eminente Relator.
A jurisprudência desta Corte sobre a matéria vem
oscilando ao sabor dos casos trazidos para julgamento e das
nuances espelhadas em cada um deles.
No HC 77.371, julgado pela Segunda Turma em 1º.09.1998,
ficou expressamente consignado no voto do eminente relator,
ministro Nelson Jobim:
“Quanto à aceitação, como prova, de depoimento testemunhal
colhido pelo Ministério Público, não assiste razão ao paciente, por dois motivos:
a) não é prova isolada, há todo um contexto probatório em que
inserida; e
b) a Lei Orgânica do Ministério Público faculta a seus membros a
prática de atos administrativos de caráter preparatório tendentes a embasar a
denúncia.” (RTJ 167/250)
Na ementa do acórdão ficou consignado:
“(...)
Legalidade da prova colhida pelo Ministério Público. Art. 26 da
Lei 8.625/93.
Ordem denegada.” (RTJ 167/248 - grifo nosso)
No mesmo ano de 1998, em 7 de dezembro, a Segunda Turma
veio novamente a enfrentar o tema, no julgamento do HC 77.770,
rel. min. Néri da Silveira. Consta do respectivo acórdão:
“(...) 4. Com apoio no art. 129 e incisos, da Constituição Federal,
o Ministério Público poderá proceder de forma ampla, na averiguação de fatos e
na promoção imediata da ação penal pública, sempre que assim entender
configurado ilícito. Dispondo o promotor de elementos para o oferecimento da
denúncia, poderá prescindir do inquérito policial, haja vista que o inquérito é
procedimento meramente informativo, não submetido ao crivo do contraditório e
no qual não se garante o exercício da ampla defesa. (...)” (DJ 03.03.2000)
Ainda no mesmo ano, em 15 de dezembro, e perante a mesma
Segunda Turma, foi julgado o RE 205.473, rel. min. Carlos Velloso.
Nesse julgado, que contrasta singularmente com o posicionamento
tomado pela Turma havia apenas uma semana, ficou assentado:
“(...)
I - Inocorrência de ofensa ao art. 129, VIII, CF, no fato de a
autoridade administrativa deixar de atender requisição de membro do Ministério
Público no sentido da realização de investigações tendentes à apuração de
infrações penais, mesmo porque não cabe ao membro do Ministério Público
realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial,
competente para tal (CF, art. 144, §§ 1º e 4º). (...)” (RTJ 173/640 – grifo nosso)
Por fim, em 06.05.2003, a mesma Segunda Turma, no
julgamento do RHC 81.326, ausentes os ministros Maurício Corrêa e
Celso de Mello, prosseguiu em sua reviravolta jurisprudencial,
consignando na ementa do acórdão:
“(...)
A Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de
requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF, art.
129, VIII).
A norma constitucional não contemplou a possibilidade do Parquet
realizar e presidir inquérito policial.
Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente
pessoas suspeitas de autoria de crime.” (DJ 1º.08.2003 – grifo nosso)
Noto, Sr. Presidente, que nesse último precedente, de
que foi relator o ministro Nelson Jobim, S. Exa. funda
essencialmente a sua nova visão sobre o tema não na inteligência
específica da Constituição de 1988, vista numa perspectiva global
e sistemática, mas, sim, em interpretações de textos legais que
datam de 1936 (Projeto Rao), 1941 (Código de Processo Penal) e
1957 (decisão do Supremo Tribunal Federal da lavra de Hungria).
Tais interpretações, ainda que válidas para um determinado
período, não o são necessariamente para outro, especialmente
tendo-se em conta a radical transformação do quadro constitucional
e especialmente o saliente papel que se procurou atribuir ao
Ministério Público no Estado brasileiro. Em suma, o método
hermenêutico de cunho historicista, além de suas deficiências
intrínsecas.
Sr. Presidente, eis a síntese do meu voto:
I) O inquérito policial, como a sua própria
denominação está a indicar, é procedimento cuja
condução cabe exclusivamente à polícia;
II) No entanto, a elucidação dos crimes e das condutas
criminosas não se esgota no âmbito do inquérito
policial. Tal elucidação pode ser fruto de
apurações levadas a efeito por diversos órgãos
administrativos, à luz do que dispõe o § único do
art. 4º do CPP.
III) Nada impede que o Ministério Público, que é o
titular da ação penal pública e natural
destinatário das investigações, proceda ele próprio
a averiguações destinadas a firmar sua convicção.
IV) No caso dos autos, contrariamente ao que sustentado
pelo ilustre Min. Marco Aurélio, não houve
investigação por parte do Ministério Público
Federal.
Peço vênia, assim, ao ilustre relator e ao ministro
Nelson Jobim, para deles discordar quanto ao fundamento de
inexistência de justa causa por falta de atribuição do Ministério
Público.
É como voto na questão preliminar. Quanto ao mérito,
voltarei a me manifestar, se for o caso, após o voto do ilustre
relator.
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