Sociedades Prestadoras de Serviço: Isenção de COFINS e Reserva Constitucional de LC
(v. Informativo 428)
RE 419629/DF*
RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE
Relatório: RE, a, da entidade sindical contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 1a Região que julgou legítima a revogação pela Lei 9.430/96 da isenção concedida às sociedades civis de profissão pela Lei Complementar 70/91, uma vez que esta, formalmente complementar, é, materialmente, lei ordinária, no tocante à criação e disciplina da contribuição social prevista no art. 195, I, da Constituição.
O STJ deu provimento ao recurso especial interposto concomitantemente ao recurso extraordinário por entender que, em razão do princípio da hierarquia das leis, lei ordinária não tem força para revogar dispositivo de lei complementar.
Daí a interposição de RE pela União contra o acórdão do STJ, por entender que houve ofensa aos seguintes dispositivos constitucionais:
a) arts. 102, III, e 105, III, uma vez que a solução do conflito entre lei ordinária e lei complementar é questão constitucional, razão pela qual não poderia ter sido examinada pelo STJ em recurso especial;
b) art. 97, por ter havido declaração de inconstitucionalidade por órgão fracionário; e
c) arts. 146, 150, § 6o, e 195, I, para afirmar que a isenção do recolhimento da COFINS é matéria que poderia ser disciplinada por lei ordinária, razão pela qual a LC 70/91 podia ser revogada pela L. 9.430/96.
A entidade sindical formulou pedido de desistência do recurso extraordinário interposto contra o acórdão do TRF por entender que, com a decisão do STJ, teria ocorrido a perda de seu objeto.
Parecer da Subprocuradora-Geral da República Maria Caetana Cintra Santos pelo prejuízo do recurso extraordinário do sindicato e pelo provimento do recurso extraordinário da União.
É o relatório.
Voto:
I
Não há falar em perda de objeto ou do interesse recursal no recurso extraordinário interposto pela entidade sindical.
É que, apesar da decisão favorável do Superior Tribunal de Justiça, ainda não transitou em julgado o acórdão proferido no julgamento do recurso especial interposto concomitantemente ao recurso extraordinário.
Do mesmo modo, não é possível homologar o pedido de desistência do recurso extraordinário do Sindicato, fundado na decisão favorável proferida pelo Tribunal Superior.
II
Certo, esta Corte assentou no julgamento do RE 140.752, 10.02.1994, Pleno, Rezek, ser incabível o RE para reexaminar a correção das premissas concretas de que haja partido a decisão do STJ, no recurso especial, se, em tese, correta.
Na ocasião, acentuei que, caso a decisão do STJ contivesse proposição contrária, em tese, aos pressupostos típicos de admissibilidade do recurso especial - definidos explícita ou implicitamente no art. 105, III, da Carta Federal -, seria cabível o extraordinário.
Esse entendimento foi posteriormente reafirmado por ambas as Turmas deste Tribunal: v.g. RE 273.351, 1ª T, 27.06.2000, Pertence; RE 202.668, 2ª T, 12.12.2000, Néri; e RE 208.775, 1ª T, 18.04.2000, Moreira.
No primeiro deles, consignei na ementa:
Recurso extraordinário: hipótese de cabimento por contrariedade, pelo acórdão do STJ em recurso especial, do art. 105, III, da Constituição.
1. Não cabe recurso extraordinário fundado em violação do art. 105, III, para rever a correção, no caso concreto, da decisão do STJ de conhecer ou não do recurso especial.
2. Cabe, porém, o extraordinário se, para conhecer ou não do recurso especial, parte o acórdão do STJ de proposição contrária em tese aos seus pressupostos típicos de admissibilidade, definidos explícita ou implicitamente no art. 105, III, da Constituição.
3. Essa a hipótese quando se nega força de lei federal a diploma normativo que o tenha, qual o caso do Convênio ICMS 66/88 - que - por disposição expressa do art. 34, § 8º, ADCT - teve hierarquia de lei complementar, até que essa fosse editada, em tudo quanto necessário para tornar eficazes as inovações introduzidas na disciplina constitucional do ICMS pela Constituição de 1988.
Ao deferir liminar na AC 346 afirmei que o conflito entre lei complementar e lei ordinária não há de solver-se pelo princípio da hierarquia, mas sim em função de a matéria estar ou não reservada ao processo de legislação complementar.
Por se tratar de matéria constitucional resolvida pelo TRF e, por isto, objeto do recurso extraordinário interposto pelo sindicato, não poderia o Superior Tribunal de Justiça examiná-la em recurso especial, sob pena de usurpar a competência do Supremo Tribunal Federal para o deslinde da questão (AI 145.589-AgR, Pertence, RTJ 153/684).
No caso, a questão constitucional - ou seja, definir se a matéria era reservada à lei complementar ou poderia ser versada em lei ordinária - é prejudicial da decisão do recurso especial, e, portanto, deveria o STJ ter observado o disposto no art. 543, § 2o, do C.Pr.Civil, verbis:
Art. 543. Admitidos ambos os recursos, os autos serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça.
§ 1o (Omissis).
§ 2o Na hipótese de o relator do recurso especial considerar que o recurso extraordinário é prejudicial àquele, em decisão irrecorrível sobrestará o seu julgamento e remeterá os autos ao Supremo Tribunal Federal, para o julgamento do recurso extraordinário.
Desse modo, passo ao exame do RE contra o acórdão do TRF da 1a Região.
III
No julgamento da ADC 1, 01.12.93, o em. Relator, Ministro Moreira Alves ressaltou no voto condutor do acórdão - RTJ 156/721, 745:
Sucede, porém, que a contribuição social em causa, incidente sobre o faturamento dos empregadores, é admitida expressamente pelo inciso I do artigo 195 da Carta Magna, não se podendo pretender, portanto, que a Lei Complementar nº 70/91 tenha criado outra fonte de renda destinada a garantir a manutenção ou a expansão da seguridade social.
Por isso mesmo, essa contribuição poderia ser instituída por Lei ordinária. A circunstância de ter sido instituída por lei formalmente complementar - a Lei Complementar nº 70/91 - não lhe dá, evidentemente, a natureza de contribuição social nova, a que se aplicaria o disposto no § 4o do artigo 195 da Constituição, porquanto essa lei, com relação aos dispositivos concernentes á contribuição social por ela instituída - que são o objeto desta ação -, é materialmente ordinária, por não tratar, nesse particular, de matéria reservada, por texto expresso da Constituição, à lei complementar. A jurisprudência desta Corte, sob o império da Emenda Constitucional nº 1/69 - e a Constituição atual não alterou esse sistema -, se firmou no sentido de que só se exige lei complementar para as matérias para cuja disciplina a Constituição expressamente faz tal exigência, e, se porventura a matéria, disciplinada por lei cujo processo legislativo observado tenha sido o da lei complementar, não seja daquelas para que a Carta Magna exige essa modalidade legislativa, os dispositivos que tratam dela se têm como dispositivos de lei ordinária.
Este, o caso vertente, relativo a norma que - embora inserida formalmente em lei complementar - concedia isenção de tributo federal e, portanto, submetia-se a regime de leis federais ordinárias, que outra lei ordinária da União, validamente, poderia ter revogado, como efetivamente revogou.
Nesse sentido na trilha do precedente invocado da ADC 1 -a jurisprudência do Tribunal permanece sedimentada (v.g., ADInMC 2111, 16.03.00, Sydney, DJ 15.12.03; AR 1264, 10.04.02, Néri, DJ 31.05.02).
Na doutrina - e independentemente da discussão acerca de ser ou não de hierarquia a relação entre a lei complementar e a lei ordinária -, também se pode dar por pacificada a mesma conclusão da jurisprudência.
A lição vem desde a obra pioneira do saudoso Geraldo Ataliba.
O mesmo se colhe na clássica monografia do douto Souto Maior Borges.
Salvo uma passagem de Manoel G. Ferreira Filho - citada e acolhida por Alexandre de Moraes - não encontrei discrepância de monta nos trabalhos mais modernos, a exemplo de Sacha Calmon, e Humberto Ávila e, ao que me parece, em passagem incidente de Roque Carrazza.
Portanto, não há falar em violação ao princípio da hierarquia das leis - rectius, da reserva constitucional de lei complementar - cujo respeito exige seja observado o âmbito material reservado às espécies normativas previstas na Constituição Federal.
Ressalto que o caso é diverso do que se discute na Rcl 2.475-AgR - efeito vinculante aos fundamentos de decisão proferida em ação de controle concentrado para o cabimento de Reclamação ao Supremo.
Esse o quadro, dou provimento ao RE da União (art. 557, § 1o-A, C.Pr.Civil) para anular o acórdão do STJ e determinar que outro seja proferido - adstrito a eventuais questões infraconstitucionais, aventadas -, e nego provimento ao RE do Sindicato (art. 557, caput, c/c 543, § 2o, do C.Pr.Civil): é o meu voto.
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