Novos tempos
Supremo quer dar caráter efetivo ao Mandado de Injunção
por Aline Pinheiro
O Supremo Tribunal Federal sinalizou, nesta quarta-feira (7/6), que se o Congresso não cumprir seu papel de legislar, o tribunal o fará, quando direito previsto na Constituição não puder ser exercido por omissão dos parlamentares ou do presidente da República. A corte deu um passo importante para a efetiva aplicação do Mandado de Injunção, um dispositivo previsto na Constituição de 1988 mas desprezado até então. Com o Mandado de Injunção, o Judiciário determina que o Legislativo legisle sobre dispositivos da Constituição que não podem ser aplicados por falta de regulamentação. Até agora, o dispositivo tinha efeito declaratório apenas. Com a nova posição, assume caráter mandamental.
O novo entendimento se manifestou com o voto do ministro Gilmar Mendes. Para o ministro, se o Legislativo não cumpre seu papel de regulamentar a lei, cabe ao Supremo interferir e fazer o direito do cidadão valer mesmo assim. No caso em questão, o que se discute é o direito de greve dos servidores públicos. Para Mendes, se não há lei que regulamente esse direito, devem valer as mesmas regras que se aplicam para os trabalhadores do setor privado.
O passo dado pelo ministro acompanha o entendimento revolucionário do ministro Celso de Mello em matéria similar. Ao julgar quebras de sigilos determinadas por CPIs, o ministro disse sim à interferência do Judiciário no Legislativo sempre que este comete abusos. Pode-se dizer que está sendo colocado um freio na até então intocável independência dos três Poderes.
"Este tribunal não pode se abster de reconhecer que, assim como se estabelece o controle judicial sobre a atividade do Legislativo, é possível atuar também nos casos de inatividade ou omissão do Poder", disse Gilmar Mendes.
O posicionamento de Mendes contrariou o voto do relator, ministro Maurício Corrêa, já aposentado. Para ele, o Judiciário não pode substituir o legislador. O entendimento de Corrêa, se baseia na posição ministro Moreira Alves, também aposentado, considerado o porta-voz do conservadorismo no STF durante a transição para a democracia.
Desde que o Mandado de Injunção foi instituído, Moreira Alves sempre lutou para adiar e evitar sua aplicação, defendendo que o Judiciário não podia assumir o papel do Legislativo. O que foi concebido pelo menos no nome para ser um mandado foi, durante quase 20 anos, apenas uma solicitação. "Comungo das preocupações quanto a não assunção pelo tribunal de um protagonismo legislativo. Entretanto, parece-me que a não atuação no presente momento já se configuraria quase como uma espécie de 'omissão judicial'", ponderou o ministro Gilmar Mendes.
Agora, a corrente deve mudar. O julgamento no Plenário do Supremo foi suspenso por pedido de vista do ministro Ricardo Lewandowski, adiando uma decisão final sobre a matéria. Mas, a aceitação e o reconhecimento ostensivo da tese sustentada por Gilmar Mendes indicam que uma nova era está nascendo nas relações entre os três poderes.
O tribunal julga três Mandados de Injunção sobre o direito de greve dos servidores. O primeiro foi ajuizado pelo Sindicato dos Servidores Policiais Civis do Espírito Santo. O relator é o ministro Maurício Corrêa. A decisão havia sido supensa por um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Os outros dois Mandados têm como relator o ministro Eros Grau que, nesta quarta-feira (7/6), teve o mesmo posicionamento de Gilmar. Um deles foi ajuizado pelo Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Estado da Paraíba e o outro, pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Estado do Pará.
Leia o voto do ministro Gilmar Mendes:
MANDADO DE INJUNÇÃO 670-9 ESPÍRITO SANTO
RELATOR
:
MIN. MAURÍCIO CORRÊA
IMPETRANTE
:
SINDICATO DOS SERVIDORES POLICIAIS CIVIS DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO - SINDPOL
ADVOGADOS
:
HOMERO JUNGER MAFRA E OUTRO
IMPETRADO
:
CONGRESSO NACIONAL
V O T O - V I S T A
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES:
Trata-se de Mandado de Injunção no qual o impetrante postula o reconhecimento do direito de greve.
O Ministro Maurício Corrêa fixou no seu voto a seguinte orientação:
1. A jurisprudência desta Corte firmou entendimento de que o julgamento do mandado de injunção tem como finalidade verificar se há mora, ou não, da autoridade ou do Poder de que depende a elaboração de lei regulamentadora do Texto Constitucional, cuja lacuna torne inviável o exercício dos direitos, liberdades e prerrogativas asseguradas pela Carta Federal.
2. Ocorre que não pode o Poder Judiciário, nos limites da especificidade do mandado de injunção, garantir ao impetrante o direito de greve. Caso assim procedesse, substituir-se-ia ao legislador ordinário, o que extrapolaria o âmbito da competência prevista na Constituição. Também não lhe é facultado fixar prazo para que o Congresso Nacional aprove a respectiva proposição legislativa, nem anular sentença judicial, convolando o mandado de injunção em tipo de recurso não previsto na legislação processual.
3. Quanto ao pedido formulado após a manifestação do Ministério Público Federal, para que seja reconhecida a eficácia da Lei Estadual 7311/02, anoto que não é possível atendê-lo, quer pela impropriedade do meio utilizado, quer pela vedação processual de se modificar a inicial depois de a autoridade coatora ter se pronunciado (CPC, artigo 264 - aplicação subsidiária).
4. Relativamente à lacuna da norma regulamentadora do dispositivo constitucional em questão, assinalo que pedido idêntico já foi apreciado por esta Corte, a qual reconheceu a mora do Congresso Nacional quanto à elaboração da Lei Complementar a que se refere o art. 37, VII, da Constituição. Comunicação ao Congresso Nacional e ao Presidente da República' (MI 438-GO, Néri da Silveira, DJ 16/06/95). No mesmo sentido, o MI 485-MT, de que fui relator, DJ 23/08/02.
Ante tais circunstâncias, conheço, em parte, do mandado de injunção, apenas para declarar a mora do Congresso Nacional quanto à edição da norma regulamentadora do artigo 37, VII, da Carta da República, devendo, quanto a este fato, ser oficiado ao órgão impetrado.
O Mandado de Injunção no Direito Brasileiro
Pedi vista dos autos para apreciar a questão da conformação constitucional do mandado de injunção no Direito Brasileiro e a evolução da interpretação que este Supremo Tribunal Federal lhe tem conferido.
Na sede do direito comparado, cabe salientar que, se alguns sistemas constitucionais, como aquele fundado pela Lei Fundamental de Bonn, comportam discussão sobre a existência ou não de direitos fundamentais de caráter social (soziale Grundrechte), é certo que tal controvérsia não assume maior relevo entre nós, uma vez que o constituinte, embora em capítulos destacados, houve por bem consagrar os direitos sociais, que também vinculam o Poder Público, por força inclusive da eficácia vinculante que se extrai da garantia processual-constitucional do mandado de injunção e da ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
Assinale-se que a Constituição de 1988 abriu possibilidades para o desenvolvimento sistemático da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade, na medida em que atribuiu particular significado ao controle de constitucionalidade da chamada "omissão do legislador". O art. 5º, LXXI, da Constituição, previu expressamente a concessão do mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora tornar inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Ao lado desse instrumento, destinado, fundamentalmente, à defesa de direitos individuais contra a omissão do ente legiferante, introduziu o constituinte, no art. 103, § 2º, um sistema de controle abstrato da omissão.
Desse modo, reconhecida a procedência da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, deve o órgão legislativo competente ser informado da decisão, para as providências cabíveis. Se se tratar de órgão administrativo, está ele obrigado a colmatar a lacuna dentro de um prazo de 30 dias.
Deve-se admitir, portanto, que, com a adoção desses peculiares mecanismos de controle da omissão do legislador, criou-se a possibilidade de se desenvolver nova modalidade de decisão no processo constitucional brasileiro. Se se partir do princípio de que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no processo de mandado de injunção e no controle abstrato da omissão, tem conteúdo obrigatório ou mandamental para o legislador e que a decisão que reconhece a subsistência de uma omissão parcial, contém, ainda que implicitamente, a declaração de inconstitucionalidade da regra defeituosa, há de se concluir, inevitavelmente, que a superação da situação inconstitucional deve ocorrer em duas etapas (Zweiaktverfahren).
Tecidas essas breves considerações, passemos à análise da jurisprudência desta Suprema Corte quanto ao writ of mandamus.
O Mandado de Injunção na jurisprudência do STF.
O Supremo Tribunal Federal, em questão de ordem no Mandado de Injunção no 107-DF (Rel. Min. Moreira Alves), manifestou o seguinte entendimento:
E M E N T A: Mandado de injunção. Questão de ordem sobre sua auto-aplicabilidade, ou não. - Em face dos textos da Constituição Federal relativos ao mandado de injunção, é ele ação outorgada ao titular de direito, garantia ou prerrogativa a que alude o artigo 5o, LXXI, dos quais o exercício está inviabilizado pela falta de norma regulamentadora, e ação que visa a obter do Poder Judiciário a declaração de inconstitucionalidade dessa omissão se estiver caracterizada a mora em regulamentar por parte do Poder, órgão, entidade ou autoridade de que ela dependa, com a finalidade de que se lhe dê ciência dessa declaração, para que adote as providências necessárias, à semelhança do que ocorre com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103, § 2º, da Carta Magna), e de que se determine, se se tratar de direito constitucional oponível contra o Estado, a suspensão dos processos judiciais ou administrativos de que possa advir para o impetrante dano que não ocorreria se não houvesse a omissão inconstitucional. - Assim fixada a natureza jurídica desse mandado, é ele, no âmbito da competência desta Corte - que está devidamente definida pelo artigo 102, I, auto-executável, uma vez que, para ser utilizado, não depende de norma jurídica que o regulamente, inclusive quanto ao procedimento, aplicável que lhe é analogicamente o procedimento do mandado de segurança, no que couber. Questão de ordem que se resolve no sentido da auto-aplicabilidade do mandado de injunção, nos termos do voto do relator. (MI no 107, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 21.09.1990)
Após esse leading case, todavia, esta Corte passou a promover alterações significativas no instituto do mandado de injunção, conferindo-lhe, por conseguinte, conformação mais ampla do que a até então admitida.
No Mandado de Injunção no 283 (DJ de 14.11.1991), de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, o Tribunal, pela primeira vez, estipulou prazo para que fosse colmatada a lacuna relativa à mora legislativa, sob pena de assegurar ao prejudicado a satisfação dos direitos negligenciados. Explicita a ementa do acórdão:
Mandado de injunção: mora legislativa na edição da lei necessária ao gozo do direito à reparação econômica contra a União, outorgado pelo art. 8º, § 3º, ADCT: deferimento parcial, com estabelecimento de prazo para a purgação da mora e, caso subsista a lacuna, facultando o titular do direito obstado a obter, em juízo, contra a União, sentença líquida de indenização por perdas e danos.
1. O STF admite - não obstante a natureza mandamental do mandado de injunção (MI 107 - QO) - que, no pedido constitutivo ou condenatório, formulado pelo impetrante, mas, de atendimento impossível, se contém o pedido, de atendimento possível, de declaração de inconstitucionalidade da omissão normativa, com ciência ao órgão competente para que a supra (cf.Mandados de Injunção 168, 107 e 232).
2. A norma constitucional invocada (ADCT, art. 8º,§ 3º - Aos cidadãos que foram impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica, em decorrência das Portarias Reservados do Ministério da Aeronáutica nº S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e nº S-285-GM5 será concedida reparação econômica, na forma que dispuser lei de iniciativa do Congresso Nacional e a entrar em vigor no prazo de doze meses a contar da promulgação da Constituição - vencido o prazo nela previsto, legitima o beneficiário da reparação mandada conceder a impetrar mandado de injunção, dada a existência, no caso, de um direito subjetivo constitucional de exercício obstado pela omissão legislativa denunciada.
3. Se o sujeito passivo do direito constitucional obstado é a entidade estatal à qual igualmente se deva imputar a mora legislativa que obsta ao seu exercício, é dado ao Judiciário, ao deferir a injunção, somar, aos seus efeitos mandamentais típicos, o provimento necessário a acautelar o interessado contra a eventualidade de não se ultimar o processo legislativo, no prazo razoável que fixar, de modo a facultar-lhe, quanto possível, a satisfação provisória do seu direito.
4. Premissas, de que resultam, na espécie, o deferimento do mandado de injunção para:
a) declarar em mora o legislador com relação à ordem de legislar contida no art. 8º, § 3º, ADCT, comunicando-o ao Congresso Nacional e à Presidência da República;
b) assinar o prazo de 45 dias, mais 15 dias para a sanção presidencial, a fim de que se ultime o processo legislativo da lei reclamada;
c) se ultrapassado o prazo acima, sem que esteja promulgada a lei, reconhecer ao impetrante a faculdade de obter, contra a União, pela via processual adequada, sentença líquida de condenação à reparação constitucional devida, pelas perdas e danos que se arbitrem;
d) declarar que, prolatada a condenação, a superveniência de lei não prejudicará a coisa julgada, que, entretanto, não impedirá o impetrante de obter os benefícios da lei posterior, nos pontos em que lhe for mais favorável. (MI no 283, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 14.11.1991)
No Mandado de Injunção no 232-RJ, da relatoria do Ministro Moreira Alves (DJ de 27.03.1992), o Tribunal reconheceu que, passados seis meses sem que o Congresso Nacional editasse a Lei referida no art. 195, § 7o, da Constituição Federal, o requerente passaria a gozar a imunidade requerida. Consta da ementa desse julgado:
Mandado de injunção. - Legitimidade ativa da requerente para impetrar mandado de injunção por falta de regulamentação do disposto no § 7o. do artigo 195 da Constituição Federal. Ocorrência, no caso, em face do disposto no artigo 59 do ADCT, de mora, por parte do Congresso, na regulamentação daquele preceito constitucional. Mandado de injunção conhecido, em parte, e, nessa parte, deferido para declarar-se o estado de mora em que se encontra o Congresso Nacional, a fim de que, no prazo de seis meses, adote ele as providências legislativas que se impõem para o cumprimento da obrigação de legislar decorrente do artigo 195, § 7o, da Constituição, sob pena de, vencido esse prazo sem que essa obrigação se cumpra, passar o requerente a gozar da imunidade requerida. (MI no 232-RJ, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 27.03.1992)
Ainda com essa mesma orientação, registre-se a ementa do acórdão proferido no Mandado de Injunção no 284, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, redator para o acórdão Ministro Celso de Mello (DJ de 26.06.1992):
MANDADO DE INJUNÇÃO - NATUREZA JURÍDICA FUNÇÃO PROCESSUAL - ADCT, ART. 8º, (PORTARIAS RESERVADAS DO MINISTÉRIO DA AERONÁUTICA) - A QUESTÃO DO SIGILO - MORA INCONSTITUCIONAL DO PODER LEGISLATIVO - EXCLUSÃO DA UNIAO FEDERAL DA RELAÇÃO PROCESSUAL - ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM WRIT DEFERIDO.
- O caráter essencialmente mandamental da ação injuncional - consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - impõe que se defina, como passivamente legitimado ad causam, na relação processual instaurada, o órgão público inadimplente, em situação de inércia inconstitucional, ao qual é imputável a omissão causalmente inviabilizadora do exercício de direito, liberdade e prerrogativa de índole constitucional.
- No caso, ex vi do § 3º do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a inatividade inconstitucional é somente atribuível ao Congresso Nacional, a cuja iniciativa se reservou, com exclusividade, o poder de instaurar o processo legislativo, reclamado pela norma constitucional transitória.
- Alguns dos muitos abusos cometidos pelo regime de exceção instituído no Brasil em 1964 traduziram-se, dentre os vários atos de arbítrio puro que o caracterizaram, na concepção e formulação teórica de um sistema claramente inconvivente com a prática das liberdades públicas. Esse sistema, fortemente estimulado pelo perigoso fascínio do absoluto (Pe. JOSEPH COMBLIN, A Ideologia da Segurança Nacional - O Poder Militar na América Latina, p. 225, 3ª ed., 1980; trad. de A. Veiga Fialho, Civilização Brasileira), ao privilegiar e cultivar o sigilo, transformando-o em práxis governamental institucionalizada, frontalmente ofendeu o principio democrático, pois, consoante adverte NORBERTO BOBBIO, em lição magistral sobre o tema (O Futuro da Democracia, 1986, Paz e Terra), não há, nos modelos políticos que consagram a democracia, espaço possível reservado ao mistério.
O novo estatuto político brasileiro - que rejeita o poder que oculta e não tolera o poder que se oculta - consagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como valor constitucionalmente assegurado, disciplinando-o, com expressa ressalva para as situações de interesse público, entre os direitos e garantias fundamentais.
A Carta Federal, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5o), enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é essencial à caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível, ou, na lição expressiva de BOBBIO, como um modelo ideal do governo público em público.
- O novo writ constitucional, consagrado pelo art. 5º, LXXI, da Carta Federal, não se destina a constituir direito novo, nem a ensejar ao Poder Judiciário o anômalo desempenho de funções normativas que lhe são institucionalmente estranhas. O mandado de injunção não é o sucedâneo constitucional das funções político-jurídicas atribuídas aos órgãos estatais inadimplentes. A própria excepcionalidade desse novo instrumento jurídico impõe ao Judiciário o dever de estrita observância do princípio constitucional da divisão funcional do Poder.
- Reconhecido o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional - único destinatário do comando para satisfazer, no caso, a prestação legislativa reclamada - e considerando que, embora previamente cientificado no Mandado de Injunção nº 283, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, absteve-se de adimplir a obrigação que lhe foi constitucionalmente imposta, torna-se prescindível nova comunicação à instituição parlamentar, assegurando-se aos impetrantes, desde logo, a possibilidade de ajuizarem, imediatamente, nos termos do direito comum ou ordinário, a ação de reparação de natureza econômica instituída em seu favor pelo preceito transitório. (MI no 284, Rel. Min. Marco Aurelio, Red. para o acórdão Ministro Celso de Mello DJ de 26.06.1992)
Percebe-se, assim, que, sem assumir compromisso com o exercício de uma típica função legislativa, o Supremo Tribunal Federal afastou-se da orientação inicialmente perfilhada.
O Mandado de Injunção e o direito de greve na jurisprudência do STF.
Na espécie, discute-se o direito de greve dos servidores públicos civis.
Nesse particular, deve-se observar que, diferentemente das relativizações realizadas quanto ao decidido no Mandado de Injunção no 107-DF (DJ de 02.08.1991), nos casos em que se apreciaram as possibilidades e condições para o exercício do direito de greve por servidores públicos civis, esta Corte ficou adstrita tão-somente à declaração da existência da mora legislativa para a edição de norma reguladora específica.
Como casos exemplificativos desse entendimento, enuncio os seguintes julgados:
1) Mandado de Injunção no 20-DF (Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 22.11.1996)- EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO - DIREITO DE GREVE DO SERVIDOR PÚBLICO CIVIL - EVOLUÇÃO DESSE DIREITO NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO - MODELOS NORMATIVOS NO DIREITO COMPARADO - PRERROGATIVA JURÍDICA ASSEGURADA PELA CONSTITUIÇÃO (ART. 37, VII) - IMPOSSIBILIDADE DE SEU EXERCÍCIO ANTES DA EDIÇÃO DE LEI COMPLEMENTAR - OMISSÃO LEGISLATIVA - HIPÓTESE DE SUA CONFIGURAÇÃO - RECONHECIMENTO DO ESTADO DE MORA DO CONGRESSO NACIONAL - IMPETRAÇÃO POR ENTIDADE DE CLASSE - ADMISSIBILIDADE - WRIT CONCEDIDO. DIREITO DE GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO: O preceito constitucional que reconheceu o direito de greve ao servidor público civil constitui norma de eficácia meramente limitada, desprovida, em conseqüência, de auto-aplicabilidade, razão pela qual, para atuar plenamente, depende da edição da lei complementar exigida pelo próprio texto da Constituição. A mera outorga constitucional do direito de greve ao servidor público civil não basta - ante a ausência de auto- aplicabilidade da norma constante do art. 37, VII, da Constituição - para justificar o seu imediato exercício. O exercício do direito público subjetivo de greve outorgado aos servidores civis só se revelará possível depois da edição da lei complementar reclamada pela Carta Política. A lei complementar referida - que vai definir os termos e os limites do exercício do direito de greve no serviço público - constitui requisito de aplicabilidade e de operatividade da norma inscrita no art. 37, VII, do texto constitucional. Essa situação de lacuna técnica, precisamente por inviabilizar o exercício do direito de greve, justifica a utilização e o deferimento do mandado de injunção. A inércia estatal configura-se, objetivamente, quando o excessivo e irrazoável retardamento na efetivação da prestação legislativa - não obstante a ausência, na Constituição, de prazo pré-fixado para a edição da necessária norma regulamentadora - vem a comprometer e a nulificar a situação subjetiva de vantagem criada pelo texto constitucional em favor dos seus beneficiários. MANDADO DE INJUNÇÃO COLETIVO: A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de admitir a utilização, pelos organismos sindicais e pelas entidades de classe, do mandado de injunção coletivo, com a finalidade de viabilizar, em favor dos membros ou associados dessas instituições, o exercício de direitos assegurados pela Constituição. Precedentes e doutrina. (MI no 20-DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 22.11.1996)
2) Mandado de Injunção no 485-MT (Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 23.08.2002) EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO. DIREITO DE GREVE DO SERVIDOR PÚBLICO. ARTIGO 37, VII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO LEGISLATIVA. OMISSÃO DO CONGRESSO NACIONAL. 1. Servidor público. Exercício do direito público subjetivo de greve. Necessidade de integralização da norma prevista no artigo 37, VII, da Constituição Federal, mediante edição de lei complementar, para definir os termos e os limites do exercício do direito de greve no serviço público. Precedentes. 2. Observância às disposições da Lei 7.783/89, ante a ausência de lei complementar, para regular o exercício do direito de greve dos serviços públicos. Aplicação dos métodos de integração da norma, em face da lacuna legislativa. Impossibilidade. A hipótese não é de existência de lei omissa, mas de ausência de norma reguladora específica. Mandado de injunção conhecido em parte e, nessa parte, deferido, para declarar a omissão legislativa. (MI no 485-MT, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 23.08.2002)
3) Mandado de Injunção no 585-TO (Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 02.08.2002) EMENTA: MANDADO DE INJUNÇÃO. DIREITO DE GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS. ARTIGO 37, VII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Configurada a mora do Congresso Nacional na regulamentação do direito sob enfoque, impõe-se o parcial deferimento do writ para que tal situação seja comunicada ao referido órgão. (MI no 585-TO, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 02.08.2002)
Conforme exposto, este Tribunal, nas diversas oportunidades em que se manifestou sobre a matéria, tem reconhecido unicamente a necessidade de se editar a reclamada legislação.
Nessas ocasiões, entretanto, o Ministro Carlos Velloso destacava a necessidade de que, em hipóteses como a dos autos, se aplicasse, provisoriamente, aos servidores públicos a lei de greve relativa aos trabalhadores em geral.
Registre-se, a propósito, trecho de seu voto no MI no 631-MS (Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 02.08.2002):
Assim, Sr. Presidente, passo a fazer aquilo que a Constituição determina que eu faça, como juiz: elaborar a norma para o caso concreto, a norma que viabilizará, na forma do disposto no art. 5º, LXXI, da Lei Maior, o exercício do direito de greve do servidor público.
A norma para o caso concreto será a lei de greve dos trabalhadores, a Lei 7.783, de 28.6.89. É dizer, determino que seja aplicada, no caso concreto, a lei que dispõe sobre o exercício do direito de greve dos trabalhadores em geral, que define as atividades essenciais e que regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.
Sei que na Lei 7.783 está disposto que ela não se aplicará aos servidores públicos. Todavia, como devo fixar a norma para o caso concreto, penso que devo e posso estender aos servidores públicos a norma já existente, que dispõe a respeito do direito de greve. (MI no 631-MS, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 02.08.2002)
Vê-se, assim, que, observados os parâmetros constitucionais quanto à atuação da Corte como eventual legislador positivo, o Ministro Carlos Velloso entendia ser o caso de determinar a aplicação aos servidores públicos da lei que disciplina os movimentos grevistas no âmbito do setor privado.
Assim como na interessante solução sugerida pelo Ministro Velloso, creio parecer justo fundar uma intervenção mais decisiva desta Corte para o caso da regulamentação do direito de greve dos servidores públicos (CF, art. 37, VII).
Entretanto, avento essa possibilidade por fundamentos diversos, os quais passarei a desenvolver em breve exposição sobre o direito de greve no Brasil e no direito comparado.
O direito de greve dos servidores públicos no Caso de São Paulo.
O direito de greve dos servidores públicos tem sido objeto de sucessivas dilações desde 1988. A Emenda Constitucional nº 19/1998 retirou o caráter complementar da Lei regulamentadora, a qual passou a demandar, unicamente, lei ordinária e específica para a matéria. Não obstante subsistam as resistências, é bem possível que as partes envolvidas na questão partam de premissas que favoreçam ao estado de omissão ou de inércia legislativa.
A representação de servidores não vê com bons olhos a regulamentação do tema, porque visa a disciplinar uma seara que hoje está submetida a um tipo de lei da selva. Os representantes governamentais entendem que a regulamentação acabaria por criar o direito de greve dos servidores públicos. Essas visões parcialmente coincidentes têm contribuído para que as greves no âmbito do serviço público se realizem sem qualquer controle jurídico, dando ensejo a negociações heterodoxas, ou a ausências que comprometem a própria prestação do serviço público, sem qualquer base legal.
Mencionem-se, a propósito, episódios mais recentes relativos à greve dos servidores do judiciário do Estado de São Paulo e à greve dos peritos do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), que trouxeram prejuízos irreparáveis a parcela significativa da população dependente desses serviços públicos.
A não-regulação do direito de greve acabou por propiciar um quadro de selvageria com sérias conseqüências para o Estado de Direito. Estou a lembrar que Estado de Direito é aquele no qual não existem soberanos.
Nesse quadro, não vejo mais como justificar a inércia legislativa e a inoperância das decisões desta Corte.
Comungo das preocupações quanto à não assunção pelo Tribunal de um protagonismo legislativo. Entretanto, parece-me que a não atuação no presente momento já se configuraria quase como uma espécie de omissão judicial.
Assim, tanto quanto no caso da anistia, essa situação parece impelir uma intervenção mais decisiva desta Corte.
Ademais, assevero que, apesar da persistência da omissão quanto à matéria, são recorrentes os debates legislativos sobre os requisitos para o exercício do direito de greve.
A esse respeito, em apêndice ao meu voto, elaborei documento comparativo da Lei no 7.783/1989 e o texto do Projeto de Lei no 6032/2002 (que Disciplina o exercício do direito de greve dos servidores públicos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e a dos Municípios, previsto no art. 37, inciso VII da Constituição Federal e dá outras providências).
Nesse contexto, é de se concluir que não se pode considerar simplesmente que a satisfação do exercício do direito de greve pelos servidores públicos civis deva ficar a bel prazer do juízo de oportunidade e conveniência do Poder Legislativo.
Estamos diante de uma situação jurídica que, desde a promulgação da Carta Federal de 1988 (ou seja, há mais de 17 anos), remanesce sem qualquer alteração. Isto é, mesmo com as modificações implementadas pela Emenda n° 19/1998 quanto à exigência de lei ordinária específica, o direito de greve dos servidores públicos ainda não recebeu o tratamento legislativo minimamente satisfatório para garantir o exercício dessa prerrogativa em consonância com imperativos constitucionais.
Por essa razão, não estou a defender aqui a assunção do papel de legislador positivo pelo Supremo Tribunal Federal.
Pelo contrário, enfatizo tão-somente que, tendo em vista as imperiosas balizas constitucionais que demandam a concretização do direito de greve a todos os trabalhadores, este Tribunal não pode se abster de reconhecer que, assim como se estabelece o controle judicial sobre a atividade do legislador, é possível atuar também nos casos de inatividade ou omissão do Legislativo.
Uma boa síntese dessa questão no direito comparado é trazida por Rui Medeiros:
Qualquer referência ao Direito Comparado neste domínio não pode perder de vista que as diferentes concepções defendidas, mesmo quando apresentadas como solução para um problema identificado sob o mesmo nomen iuris, têm, por vezes, subjacentes diferentes modos de delimitação do próprio fenômeno em apreciação. Seja como for, feita a advertência, é possível verificar que os direitos italiano, alemão e austríaco apresentam três modos diferentes de solucionar o problema das sanções aplicáveis às leis que conferem direitos em violação do princípio da igualdade. As especificidades não residem, propriamente, na resposta à questão da admissibilidade, com carácter mais ou menos excepcional, das decisões modificativas, pois, em qualquer dos países, não se exclui liminarmente uma tal solução. O mesmo se passa, aliás, em Espanha, em França e nos Estados Unidos. As divergências situam-se a outro nível.
[Esclarece Rui Medeiros que] A diferença entre a lição alemã e o ensinamento italiano prende-se, antes de mais, com a delimitação dos casos em que são constitucionalmente admissíveis as decisões modificativas
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