Voto oral no RE nº 353.657 – Sujeito a revisão
4. Antes de analisar o mérito do recurso, entendo conveniente
breve análise contextual, histórica e comparativa da natureza jurídica do IPI
(imposto sobre produtos industrializados) e do princípio da não-cumulatividade:
Dispõe a Constituição Federal no art. 153, IV e § 3º, II:
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
(...)
IV – produtos industrializados;
(...)
§ 3º. O imposto previsto no inciso IV:
(...)
II – será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada
operação com o montante cobrado nas anteriores;”
Daí se vê logo que a Constituição da República atribuiu à União
competência para instituir imposto sobre operações praticadas com produtos
industrializados e, mediante modal obrigatório (verbo ser), pré-excludente de
alternativa à lei ordinária a respeito, impôs seja não-cumulativo, compensando-se
o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores.
Segundo ALCIDES JORGE COSTA, “os impostos sobre vendas,
tomada esta expressão na acepção de impostos sobre o tráfico de mercadorias,
admitem basicamente três modalidades:
“1. Imposto multifásico cumulativo: cobrado em cada uma das transações
pelas quais a mercadoria passa desde a fonte de produção até entrega
ao consumidor. O imposto pago numa transação não é levado em
conta nas subseqüentes, de modo que o ônus tributário se vai
acumulando.
2. Imposto monofásico: cobrado apenas uma vez, seja do produtor, seja do
atacadista, seja do varejista, em um só ponto do processo de produção
e distribuição.
3. Imposto de valor acrescido: cobrado em cada transação, desde a
produção até entrega ao consumidor. O imposto recai, em cada
transação, apenas sobre o valor acrescido à mercadoria pelo
vendedor.” 1
O valor acrescido ou valor agregado corresponde à diferença entre
o preço final de venda das mercadorias produzidas (ou vendidas) pelo contribuinte
e o preço das mercadorias (adquiridas para revenda) ou produtos por ele
adquiridos como matérias primas ou insumos. E pode ser apurado por diferentes
métodos ou técnicas:
“O cálculo do valor acrescido admite duas formas: a pura ou
sobre base real e a forma de cálculo sobre base financeira.
Pela forma pura ou sobre base real, que se atém ao conceito
estatístico e econômico de valor acrescido, este se obtém mediante a
dedução do valor da produção de um determinado período (quer
vendida, quer mantida em estoque) do montante dos gastos de
aquisição das matérias primas, materiais secundários e equipamento
(ou a quota de depreciação deste, tal seja o tipo do imposto) utilizados
na produção. Este método é de aplicação muito difícil e, por isso
mesmo, não utilizado na prática. Sua adoção exigiria o emprego, no
cálculo do valor da produção, de métodos de avaliação semelhantes
aos de avaliação dos estoques de fim de exercício (custo histórico,
custo médio, custo standard, LIFO, FIFO), com todas as dificuldades
inerentes a tais métodos.
Pela forma financeira de cálculo, o valor acrescido é computado
mediante dedução, do total das vendas de um período (quer de bens
produzidos no período, quer já existentes em seu início), das
aquisições de matérias primas e materiais secundários no mesmo
período (quer utilizadas, quer as existentes em estoque ao fim do
período); o tratamento dos investimentos depende do tipo do
imposto. Esta é a forma adotada por motivos de ordem prática.
Dentro dos três tipos já assinalados (renda, consumo e produto
bruto) e da fora financeira de cálculo, podem distinguir-se ainda dois
métodos de cálculo do valor acrescido: o de adição e o de subtração.
O método de adição consiste em somar todos os componentes
do valor acrescido de uma empresa num período dado: salários, juros,
lucro líquido, depreciações, etc.
1 ICM na Constituição e na Lei Complementar. São Paulo: Editora Resenha Tributária. 1978. p. 5 e 6.
O método de subtração admite duas variantes: o de base sobre
base e o de imposto sobre imposto.
Pelo método de subtração variante base sobre base, o valor
acrescido resulta da diferença entre o montante das vendas e o das
aquisições no mesmo período.
Pelo método de subtração variante imposto sobre imposto, o
valor acrescido obtém-se deduzindo do imposto a pagar o imposto
que incidiu sobre os bens adquiridos no mesmo período.
Desnecessário acrescentar que, em qualquer das variantes, as deduções
dependem do tipo de imposto : renda, consumo, produto bruto.
O método geralmente usado é o de imposto sobre imposto.”2
Discorrendo sobre o antigo ICM, ALCIDES JORGE COSTA
compara o imposto multifásico cumulativo com o imposto sobre valor agregado e
aponta as razões que levaram o legislador a abandonar o imposto sobre vendas e
consignações, adotando o ICM não-cumulativo:
“Este imposto (multifásico cumulativo) apresenta duas
vantagens sobre os demais tipos. A primeira é a de tratar-se de um
tipo mais tosco e, portanto, de mais fácil aplicação e compreensão,
fator que , num país como o Brasil, não é desprezível. A segunda é a
de ser o tipo que, para um determinado volume de arrecadação, exige
uma alíquota mais baixa do que qualquer outro tipo, ao mesmo tempo
em que difunde o impacto tributário por um número muito maior de
empresas.
Estas vantagens são compensadas por desvantagens que o
legislador teve em mente ao introduzir o tipo do valor acrescido.
Assim é que o Relatório com que a Comissão encarregada de elaborar
o ante-projeto de reforma tributária encaminhou sua proposta ao
Ministro da Fazenda diz que é “característica moderna dos impostos
sobre a circulação, primeiro elaborada na França e imitada pela
maioria dos países, a de só tributarem, em cada sucessiva operação, o
valor acrescido, eliminado-se assim os notórios malefícios econômicos
da superposição em cascata, de incidências repetidas sobre bases de
cálculo cada vez mais elevadas pela adição de novas margens de lucro,
de novas despesas acessórias, e do próprio imposto que recaiu sobre
as operações anteriores.
A primeira desvantagem é a de que o imposto de vendas do tipo
multifásico cumulativo incentiva a integração vertical das empresas. Se
o tributo é pago em cada operação de que resulta a passagem da
mercadoria de uma empresa para outra, até entrega ao consumidor,
2 ALCIDES JORGE COSTA. op. cit. p. 25 a 26.
quanto mais integralizada verticalmente uma empresa, tanto menor
será o ônus a que ficarão sujeitas as mercadorias por ela vendidas.
(...)
No comércio do café, as tradicionais vendas na praça de Santos,
que eram muitas em virtude das quais o produto podia ser transferido
várias vezes, viram-se quase condenadas ao desaparecimento em
virtude do ônus insuportável criado pela incidência múltipla do
imposto de vendas e consignações. A situação chegou a tal ponto que
se tornou necessária legislação especial que concedeu isenção do
tributo para as operações internas da praça de Santos, realizadas com
café, quando destinadas à formação de lotes para exportação. As
grandes empresas não eram afetadas pelo problema porque adquiriam
o café diretamente dos produtores e o exportavam, ficando sujeitas
apenas a duas incidências, na compra e na exportação.
(...)
O imposto multifásico cumulativo em cascata ressente-se de
outro grave defeito: o de não constituir uma carga uniforme para
todos os consumidores que são, afinal, quem o suportam. Este ônus
será tanto maior quanto mais longo o ciclo da produção e da
comercialização de cada produto. Como a essencialidade do produto
não guarda relação alguma com a extensão do ciclo a que fica sujeito
até chegar ao consumidor, pode acontecer – e acontecia muitas vezes
– que o produto mais essencial seja o mais onerado. Por exemplo:
jóias tem um ciclo de produção e comercialização normalmente mais
curto que o de certos artigos de alimentação, como a carne.
Um imposto multifásico cumulativo torna impraticável uma
desoneração completa dos produtos exportados. Por outro lado, um
produto importado e vendido diretamente ao consumidor fica em
posição altamente vantajosa na concorrência com produtos fabricados
no país.
Evitar estes males é quase sempre possível, mas à custa de perda
da simplicidade que é um dos maiores atrativos do imposto de vendas
multifásico cumulativo.”3
4.1. No Brasil, como o pressuposto de fato legitimador da
competência para instituição do IPI é a existência de um produto industrializado
(art. 153, IV da CF), não tomou a Constituição por aspecto material da regramatriz
de incidência (fato gerador) o valor agregado, como sucede nos países
europeus, mas o valor da operação. Nesse sentido, não há em nosso sistema
constitucional tributário um imposto sobre o valor agregado (fato gerador). Mas a
3 op. cit. p.
regra de não-cumulatividade, prevista no § 3º do art. 153, há, é óbvio, de ter e
produzir alguma eficácia.
4.2. A regra da não-cumulatividade (art. 153, § 3º, II) encontra-se
no mesmo nível taxinômico ou hierárquico da norma de competência e, como tal,
conforma-lhe o exercício (obrigatório). São duas normas que se completam e
complementam, exigindo interpretação conjunta e coerente.
O § 3º, II, do art. 153 da Constituição, hospeda, mediante adoção
de certa técnica, consistente na compensação do montante devido com o cobrado
nas operações anteriores, uma finalidade e um limite objetivo.
A finalidade está na divisão ou distribuição do impacto financeiro do
tributo entre os diversos elos da cadeia produtiva, de modo a que a tributação total
(oneração) seja equivalente ao resultado da aplicação da alíquota sobre o preço
final do produto (ao consumidor). Noutras palavras, é a exclusão da incidência, em
cascata, do tributo que oneraria o produto final mediante acréscimo do imposto
nas diversas etapas da cadeia produtiva.
O limite objetivo, esse volta-se ao legislador ordinário, que não
pode disciplinar o tributo em desacordo com tal alcance da norma constitucional,
ou seja, não pode vedar a apropriação do crédito, nem usar de artifícios para
fraudar a finalidade imanente à norma constitucional, tornando o imposto
cumulativo.
Temos, pois, um imposto multifásico sobre operações com
produtos industrializados (valor total), mas que obedece à mesma técnica de
distribuição do encargo financeiro (finalidade) adotada para os impostos que
incidem sobre o valor agregado (método de imposto sobre imposto).
A não-cumulatividade, como limite constitucional objetivo,
preordena-se à realização de certos valores, “como o da justiça da tributação, o do
respeito à capacidade contributiva do administrado, o da uniformidade na
distribuição da carga tributária”4, e não decorre da definição do fato gerador, da
base de cálculo, nem da qualidade do contribuinte do imposto, mas de norma
independente, inserida no próprio texto constitucional. É o que acentua
GILBERTO DE ULHOA CANTO, ao analisar o princípio em relação ao ICM:
“2.20 Ela (a não cumulatividade) é assegurada pela regra que
prevê o abatimento, em cada operação, do montante pago nas
anteriores, regra esta que não incide sobre nenhum dos elementos da
própria obrigação tributária, porque diz respeito ao modo pelo qual o
tributo será recolhido. É claro que a eficácia da regra é, em termos
práticos, a mesma que ela teria se em seu lugar a Constituição
houvesse baseado a não-cumulatividade do tributo em elementos da
própria obrigação. Mas, é importante deixar marcada a diferença
porque, como regra sobre o recolhimento a compensação do imposto
devido com o já pago terá de ser examinada dentro desse contexto, e a
sua observância compulsória se cinge à finalidade a que se destina.
2.21 A não–cumulatividade do ICM não é apenas um fenômeno
econômico ou financeiro, embora sejam desta índole alguns dos seus
fundamentos. É, também, principalmente, fenômeno jurídico a partir
de quando a Constituição a enuncia como característica do tributo,
que em virtude dela não poderá ser instituído e cobrado “em cascata”.
O primeiro efeito da não-cumulatividade é que o montante global de
ICM que grava determinada mercadoria ao fim do seu ciclo de
produção e circulação não poderá exceder o produto da multiplicação
da sua alíquota real pelo valor da última operação por ele tributada. A
referência à alíquota real justifica-se pelo fato de o ICM ser calculado
“por dentro”.
2.22 Outro efeito da não-cumulatividade do tributo é homólogo
do primeiro: em qualquer fase do processo de produção e circulação
por ele atingido o seu montante acumulado será apurado mediante a
multiplicação da alíquota real pelo valor da mercadoria até então
agregado.
4 PAULO DE BARROS CARVALHO. Isenções Tributárias do IPI, em face do Princípio da não-
Cumulatividade, in Revista Dialética de Direito Tributário nº 33. São Paulo: Dialética. p. 156
2.23 Para que esses efeitos sejam logrados é necessário que cada
contribuinte possa abater do montante do ICM calculado como
devido sobre o valor da operação de que decorrerá a saída da
mercadoria por ele promovida todos os recolhimentos anteriormente
feitos pelos contribuintes que o antecederam no ciclo econômico.
(...)
2.24 O direito assegurado como forma de manter-se o ICM
como imposto não-cumulativo é exercitável pelo contribuinte nos
termos em que a Constituição o enuncia e a legislação complementar o
regula. Ele não se insere no âmbito da própria obrigação tributária, já
que não afeta o fato gerador, a base de cálculo ou o contribuinte. O
seu efeito sobre o recolhimento do imposto consiste em determinar
que em cada operação de saída o montante que o contribuinte irá
desembolsar seja reduzido pelo montante pago nas operações
anteriores. Trata-se de modalidade meramente financeira de garantir
que o valor do imposto a ser desembolsado por qualquer contribuinte
será apenas a diferença entre o montante que resulte da operação por
ele promovida e o total recolhido pelos contribuintes que o
antecederam no ciclo de produção e circulação”5
Nesse diagrama, traçado pelo art. 153, IV e § 3º, II, da
Constituição Federal, analiso o mérito do recurso.
5. No RE n º 212.484/RS (Rel. para o acórdão Min. NELSON
JOBIM, DJ de 27.11.98), o Plenário desta Corte, ao julgar recurso contra acórdão
do Tribunal Regional Federal da 4ª Região “que autorizou contribuinte do IPI a
creditar-se do valor do tributo incidente sobre insumos adquiridos sob o regime de
isenção”, firmou entendimento de que “não ocorre ofensa à CF (art. 153, § 3º, II)
quando o contribuinte do IPI credita-se do valor do tributo incidente sobre insumos
adquiridos sob o regime de isenção” (trecho da ementa).
Na oportunidade, a então recorrente argüira ofensa ao art. 153, §
3º, II, da Constituição, “segundo a qual a compensação do tributo, que é não
5 ICM – Não-Cumulatividade Abatimento Constitucional, in Revista de Direito Tributário nº 29-30. p. 203.
cumulativo, deverá ocorrer entre o que for devido, em cada operação, e o que for
exigido nas operações anteriores, inexistindo disposição que autorize a
compensação entre o que for devido, em cada operação, e o que devesse ser
pago, nas operações anteriores, não estivesse ela coberta por isenção.”
Prevaleceu, na decisão, o voto do Min. NELSON JOBIM:
“Sr Presidente, o ICMS e o IPI são impostos criados no Brasil, na
esteira dos impostos de valor agregado.
A regra, para os impostos de valor agregado, é a não cumulatividade,
ou seja, o tributo é devido sobre a parcela agregada ao valor tributado
anterior. Assim, na primeira operação, a alíquota incide sobre o valor
total. Já na segunda operação, só se tributa o diferencial.
O Brasil, por conveniência, adotou-se técnica de cobrança distinta.
O objetivo é tributar a primeira operação de forma integral e, após,
tributar o valor agregado. No entanto, para evitar confusão, a alíquota
incide sobre todo o valor em todas as operações sucessivas e concedese
crédito do imposto recolhido na operação anterior. Evita-se, assim,
a cumulação.
Ora, se esse é o objetivo, a isenção concedida em um momento da
corrente não pode ser desconhecida quando da operação subseqüente
tributável. O entendimento no sentido de que, na operação
subseqüente, não se leva em conta o valor sobre o qual deu-se a
isenção, importa meramente em diferimento.
(...)
Com a vênia do eminente Ministro-Relator, ouso divergir, com o
pressuposto analítico do objetivo do tributo de valor agregado. O que
não podemos, por força da técnica utilizada no Brasil para aplicar o
sistema do tributo sobre o valor agregado não-cumulativo, é torná-lo
cumulativo e inviabilizar a concessão de isenções durante o processo
produtivo.
Tenho cautela que impõe a técnica do crédito e não de tributação
exclusiva sobre o valor agregado. Tributa-se o total e se abate o que
estava na operação anterior. O que se quer é a tributação do que foi
agregado e não a tributação do anterior, caso contrário não haverá
possibilidade efetiva de isenção: é isento numa operação, mas poderá
ser pago na operação subseqüente.”
6. No caso presente, a União reconhece o direito ao crédito em
relação aos produtos isentos e, por boa conseqüência, admite a interpretação
dada ao princípio da não-cumulatividade. Quer, no entanto, afastar a aplicação do
precedente, sob alegação de que se trataria de “institutos diversos”, que não
poderiam receber “tratamento idêntico”. Ou seja, a União reconhece, de modo
categórico e formal, a premissa, mas descarta-a nas hipóteses de alíquota zero e
de não-tributação. Logo, a premissa é incontroversa; a questão última está
apenas em saber se se aplica, ou não, a essas duas hipóteses.
E, por sustentar que se não aplicaria, afirma que, “na isenção –
diversamente do que ocorre com a alíquota zero – não há crédito tributário pois a
norma isentiva impede o surgimento do crédito pela frustação da incidência da
norma de tributação. Em outras palavras, amparado pela doutrina de Souto Maior
Borges, a norma isentiva incide para que não incida a norma que gera o dever
tributário. Por outro lado, na alíquota zero, verifica-se a incidência da norma
tributária e surge o crédito tributário. No entanto este crédito é nulo pela sua
multiplicação com um valor vazio, que nada exprime, não resultando em nenhuma
soma pecuniariamente apreciável” (fls. 177/178).
Não obstante os esforços dialéticos da União, é evidente que, em
relação à não-cumulatividade, assim a isenção, como a alíquota zero produzem o
mesmíssimo efeito jurídico e prático, não se justificando, pois, a idéia de
tratamentos diferenciados.
A diferença jurídica apreciável entre a isenção e a alíquota zero
reside no fato de que esta pode concedida pelo Presidente da República mediante
decreto, nos limites fixados em lei (art. 153, § 1º, da CF), ao passo que a isenção
somente pode sê-lo por lei específica (art. 150, § 6º). A motivação política de uma
ou de outra é variável, inspirada em razões de extrafiscalidade (instrumento célere
de intervenção na economia), ou de maior proteção por força da exigência de
trânsito pelo procedimento legislativo ordinário.
O resultado perante a não-cumulatividade é, todavia, o mesmo:
tanto na isenção, quanto na alíquota zero, se não reconhecido ao adquirente o
direito de se creditar do IPI relativo à operação correspondente, a desoneração
degrada-se em simples diferimento do imposto, acarretando, até, aumento da
carga tributária final, conforme se advertiu no julgamento do RE 353.668/PR:
“Negar o creditamento é negar que os efeitos da isenção,
alíquota zero ou não-tributação intercorrentes alcancem o custo final
do produto.
Nisso JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES é definitivo.
(...)
Não admitir para a hipótese de alíquota-zero e, mesmo, de não
tributação, o que o STF reconheceu para a isenção, é inutilizar
instrumentos de política governamental que, em nada, se diferenciam,
quanto aos efeitos, da isenção.
Aliás, são mais ágeis.
A alíquota zero depende só de decreto.
A isenção, de lei.
As razões de decidir do RE 21.484 não se alteram.
A União não tratou o IPI no seu contexto macro” (do voto do
Min. NELSON JOBIM).
A só nomenclatura, no contexto, não pode sobrepor-se aos efeitos
do instituto. Doutro modo, bastaria ao legislador adotar a alíquota zero, por via de
lei (verdadeira isenção), em etapas alternadas da cadeia produtiva, para se
aniquilar a regra da não-cumulatividade do IPI, tornando-o cumulativo, com o
agravo de se arrecadar mais do que se arrecadaria sem a concessão do que
deveria ser “benefício fiscal”.
A título de exemplo, tome-se cadeia produtiva com quatro etapas
tributadas com alíquota uniforme de 10% (i):
I II III IV
Preço 100 200 300 400
Imposto 10 20 30 40
Crédito 10 20 30
Encargo 10 10 10 10
Com isenção ou alíquota zero – benefício fiscal (ii):
I II III IV
Preço 100 200 300 400
Imposto benefício 20 Benefício 40
Crédito - 0 20 0
Encargo 0 20 0 40
Como prova e ilustra o exemplo, a tributação total é maior no caso
de concessão de benefício (alíquota zero ou isenção) do que no de tributação de
todas etapas do ciclo produtivo. Transparece aí, manifestíssima, a fratura da
norma da não-cumulatividade: na etapa subseqüente do ciclo arca-se com o
encargo relativo à operação anterior.
O excesso da conclusão demonstra o excesso da premissa.
7. Em relação aos produtos “não tributados”, embora o resultado
prático seja o mesmo (= não pagamento do tributo), cumpre identificar e distinguir
três situações teóricas possíveis:
i) produtos não tributados (N/T) por ausência de competência
tributária (imunidade ou ausência de competência por exclusão lógico-residual da
norma atributiva);
ii) produtos não tributados (N/T) por não estarem incluídos na lei
que fixa o âmbito de incidência, mas estarem incluídos no da competência;
iii) produtos não tributados (N/T) por expressa disposição legal
(dentro do âmbito de competência e dentro do âmbito de incidência).
Estas duas últimas situações (ii e iii) equiparam-se às da isenção e
da alíquota zero por subtraírem à regra-matriz de incidência determinado aspecto,
no caso, o material (o fato gerador), podendo ser adotadas pelo Poder Legislativo
como instrumento de política fiscal. Por estarem no âmbito de competência do
tributo, permitem a incidência da norma da não-cumulatividade e autorizam o
contribuinte a creditar-se do valor relativo à aquisição de produto, atendendo à
finalidade inerente à mesma norma.
Já em relação ao primeiro exemplo (não tributação por ausência de
competência), a regra da não-cumulatividade não enseja direito a crédito, porque
alheio ao ciclo econômico tomado como pressuposto de fato do imposto (não se
trata de produto industrializado). Não há direito a crédito, porque se cuida de bem
(mercadoria ou produto) que não pertence ao universo factual pressuposto à
disciplina do Imposto sobre Produtos Industrializados.
A título de exemplo, podem citar-se os produtos capitulados na TIPI
(Tabela do IPI) nas três sub-categorias de produtos não-tributados.
8. Quanto à alegação de ausência de lei específica que autorize o
creditamento e de pretensa afronta ao art. 150, § 6º, da Constituição Federal, que
a exige para concessão de “crédito presumido”, tampouco tem consistência.
Uma coisa é o direito à isenção, a alíquota zero e a não tributação;
outra, o direito ao crédito do imposto relativo à aquisição de produtos isentos, não
tributados, ou sujeitos à alíquota zero.
Os primeiros são espécies desonerativas (benefícios fiscais), que
atingem a regra-matriz de incidência, enquanto o segundo apóia-se na regra
constitucional da não-cumulatividade, que outorga ao sujeito passivo o direito
subjetivo de suportar o encargo tributário proporcionalmente à sua participação no
valor da cadeia produtiva.
Para que se concedam tais benefícios, a Constituição exige, em
princípio, lei específica, como observou o Min. NELSON JOBIM, no julgamento do
RE nº 353.668/PR, para evitar a inclusão, em projeto sobre outro assunto, de
interesse do governo ou da maioria, de preceito destinado a beneficiar categorias,
regiões ou situações particulares, mediante aprovação em bloco: “É uma regra
limitadora indireta do direito parlamentar de oferecer emendas” (p. 668 do
Ementário nº 2.114-4).
O direito ao crédito, esse repousa no art. 153, § 3º, II, da
Constituição da República, e, como tal, não fica ao alcance do legislador ordinário,
o qual carece de alternativa para o reconhecer, ou não. Diferentemente do ICMS,
que também é não-cumulativo, a Constituição não contém restrição nem exceção
alguma ao direito ao crédito que deva ser abatido pelo sujeito passivo do imposto.
Ambos impostos sujeitavam-se, aliás, ao mesmo regime de nãocumulatividade
até à edição da Emenda Constitucional nº 23/83, antes da qual
tanto a isenção, a alíquota zero, quanto a não-incidência davam ao adquirente o
direito ao crédito (cf. Embargos de Divergência no RE nº 94.177, Rel. Min. DJACI
FALCÃO, 01.12.1982). Ao propósito, recordou-se:
“Um ano após, os Estados, via Congresso Nacional, reagiram.
Era o problema, ainda de hoje, da Guerra Fiscal.
É promulgada a Emenda PASSOS PORTO (EC. 23, de 01.12.1983).
Ela alterou a redação do art. 23, II da EC nº 1/1969.
Acresceu, no final, a expressão
“... a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da
legislação, não implicará crédito de imposto para abatimento daquele
incidente nas operações seguintes;”
Caiu, assim, em relação ao ICM e exclusivamente a ele, a orientação
do STF.
A isenção ou não-tributação intercorrentes, na cadeia produtiva
relativa ao ICM, salvo se lei específica dispuser em contrário, passaram
a não implicar crédito para compensação nas operações subseqüentes.
A constituição 1988 – no ICMS – foi mais longe.
A isenção ou não-incidência passou a ter dois efeitos:
a) o primeiro, igual ao de 1.983:
- continuaram a não implicar “crédito para a compensação com o
montante devido nas operações ou prestações seguintes” (CF art.
155, § 2º, II, a);
b) o segundo, uma novidade (mero complemento):
- passaram a acarretar “a anulação do crédito relativo às operações
anteriores” (CF, art. 155, § 2º, Ii, b);
Nada se alterou quanto ao IPI” (do voto do Min. NELSON
JOBIM, no RE nº 353.668, Ementário 2.114-4, p. 645).
Para o ICMS seria curial o raciocínio invocado pela União, pois o
crédito de imposto decorrente de aquisição de produtos (mercadorias) isentos, não
tributados ou sujeitos à alíquota zero, traduziria benefício fiscal, enquanto
expressamente excluída sua possibilidade pela Constituição (“II – a isenção ou
não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação”... “a) não implicará
crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações
seguintes;” – art. 155, § 2º, II, “a”, da CF).
Quanto ao IPI, entretanto, o direito ao crédito já se encontra
previsto na própria Constituição, dentro do núcleo significativo da regra da nãocumulatividade.
Se, aliás, tal direito relativo a aquisições isentas ou não tributadas
não fosse conseqüência direta e linear da regra da não-cumulatividade, qual seria
a razão por que foi, na Constituição mesma, aberta a exceção textual do art. 155,
§ 2º, II, “a”? Seria absurda exceção expressa a preceito cujo âmbito geral já a
compreenderia!
9. Quanto à alíquota por aplicar neste caso e às conseqüências
dessa atribuição, penso que tais matérias não foram ventiladas no recurso, de
modo que se lhe encontrariam fora dos limites de cognição. Mas, porque não
fiquem sem resposta, examino os argumentos suscitados a respeito nos
memoriais.
Alega a União que, como não há lei específica que autorize o
creditamento, nem alíquota aplicável à operação isenta, o reconhecimento do
crédito importaria atuação “positiva” da Corte, pois seria mister fixar “valor” não
previsto em lei.
O argumento funda-se em petição de princípio.
Se o direito ao crédito dependesse da previsão de lei ordinária,
seria correto o raciocínio. Mas, como suponho haver demonstrado, esse direito
nasce, em linha reta, da norma constitucional que proíbe seja cumulativo o IPI.
Uma das formas de garantir efetividade a essa regra constitucional
é aplicar a alíquota, devida à saída dos produtos, sobre o valor dos que tenham
sido adquiridos no processo produtivo (matérias primas ou insumos), porque se
não anule a não-cumulatividade nessa etapa, nem se converta o benefício fiscal
(isenção, alíquota zero, ou não-incidência) em simples diferimento do imposto.
Não se trata, portanto, de nenhuma criação pretoriana, senão do resultado da
intelecção e aplicação da norma constitucional que encerra uma finalidade e
institui um limite objetivo.
A crítica à adoção da alíquota da saída para os produtos
adquiridos, consoante a orientação jurisprudencial da Corte, no sentido de que tal
procedimento significaria seletividade às avessas, por conceder crédito maior a
produtos mais onerados, os quais pelo princípio da seletividade são os supérfluos,
não constou do objeto do recurso extraordinário, mas apenas dos memoriais.
Incorre, porém, no mesmo vício de petição de princípio, porque
supõe possibilidade de recuperação do encargo que teria incidido, se não fora o
produto alcançado por benefício fiscal.
Explico. Se, por exemplo, o produto seja vendido por R$ 600,00, o
valor do IPI corresponda a R$ 60,00 (10%), e a matéria prima custe R$ 200,00, há
duas situações por considerar em relação ao encargo final:
i) matéria prima com benefício fiscal sem direito ao crédito
vale R$ 60,00;
ii) matéria prima com benefício fiscal com direito ao crédito
com base na alíquota de saída (10% = $ 20,00) vale $
40,00.
No primeiro caso (i), o encargo financeiro abrange todo o valor
relativo à primeira operação e, no segundo, apenas o valor acrescido pelo sujeito
passivo, de acordo com a alíquota mais onerosa. Ou seja, a aplicação da alíquota
à matéria prima não interfere na aplicação da alíquota seletiva ao montante
agregado pelo sujeito passivo, que continua a assujeitar-se a esse valor.
10. Quanto à aplicação do art. 11 da Lei n° 9.779/99 ao caso,
também suscitada pela União apenas nos memoriais, como argumento para negar
a existência do direito ao crédito relativo aos produtos isentos, não tributados ou
submissos à alíquota zero, saliento desde logo que a matéria não foi deduzida no
recurso extraordinário, donde escapar-lhe ao âmbito de devolutividade.
10.1. De todo modo, não mereceria acolhida a objeção, pois recai
sobre norma infra-constitucional, que, além de figurar hipotético objeto de mera
inconstitucionalidade reflexa, não incidiria na espécie, ainda quando se supusesse
vigente à data dos fatos da causa.
A decisão impugnada fundamentou-se no art. 153, § 3º, II, que
prescreve à disciplina do IPI a observância do princípio da não-cumulatividade,
“compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado
nas anteriores”, para garantir ao contribuinte o direito de se creditar do valor
equivalente à aplicação da alíquota incidente nas saídas tributadas sobre o preço
das matérias primas adquiridas (direito ao crédito).
O art. 11 da Lei n° 9.779/99, por sua vez, dispõe sobre o direito à
manutenção do crédito, verbis:
“Art. 11. O saldo credor do Imposto sobre Produtos
Industrializados - IPI, acumulado em cada trimestre calendário,
decorrente de aquisição de matéria-prima, produto intermediário e
material de embalagem, aplicados na industrialização, inclusive de
produto isento ou tributado à alíquota zero, que o contribuinte não
puder compensar com o IPI devido na saída de outros produtos,
poderá ser utilizado de conformidade com o disposto nos arts. 73 e
74 da Lei nº 9.430, de 1996, observadas normas expedidas pela
Secretaria da Receita Federal - SRF, do Ministério da Fazenda.”
Eventual recurso a este dispositivo a título de fator condicionante
da exegese da regra da não-cumulatividade, estampada no art. 153, § 3º, II, da
Constituição, implicaria –
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