Notícias > Valor Econômico | Arrecadação | 25/11/2009
AJUSTE FAZ POUCO PELA EFICIÊNCIA E MUITO PELA ARRECADAÇÃO
O que se espera do sistema tributário de um país é que ele seja simples, previsível e justo. O oposto do sistema brasileiro, segundo diagnóstico de agentes econômicos e do próprio governo. As dificuldades começam na hora de decidir como fazer para melhorar. Não é de hoje que o tema da reforma tributária está em pauta- vem atravessando vários governos. Existe uma proposta nesse sentido paralisada no Congresso. Não há, porém, quem aposte um centavo que ela cresça e apareça até o fim deste governo.
"Como a reforma não sai, o caminho é fazer ajustes pontuais por meio de leis ordinárias e leis complementares como o Senado já vem fazendo", defende o economista José Roberto Afonso, que atua junto ao PSDB. Ele cerra fileiras entre aqueles que acham que é melhor mudar tudo o que está aí do que reformar. Mudar tudo significa principalmente reduzir a carga bruta de tributos que subiu de 34,7% do PIB, em 2007, para 35,8%, em 2008, de acordo com dados da Receita Federal. Em valores, representa pouco mais de R$ 1 bilhão.
Não é só o tamanho da carga tributária que incomoda e está em discussão. No ranking mundial, o Brasil está até abaixo da média dos 30 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que é de 36 %. A questão mais estrutural é a forma pela qual a carga de impostos está distribuída e a sua extrema complexidade - que traz mais custos tanto para os contribuintes, especialmente as empresas, como para o agente arrecadador, no caso o governo, que precisa gastar mais para manter a estrutura de auditagem e fiscalização.
"Um arcabouço tributário mais simplificado traria menos custo, estimularia os investimentos e reduziria a informalidade na economia", diz Rogério Cesar Souza, economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). Os números mostram que o modelo brasileiro de arrecadação atinge mais os investimentos, recaindo sobre bens e serviços, do que sobre a renda, a propriedade e o consumo. Cerca de 60% dos tributos incidem sobre produção e trabalho enquanto cerca de 30% atingem a renda e o lucro. "É o inverso do que ocorre nos países comparáveis ao Brasil", diz o advogado tributarista Helenilson Cunha Pontes.
A multiplicidade de impostos que invade toda a cadeia produtiva, encarecendo os produtos e minando a competitividade das empresas, revela a capacidade criativa do país, exposta de forma irônica até na obra de Machado de Assis. O personagem de "O Alienista" financiou o sanatório por meio de um imposto cobrado sobre os enfeites dos cavalos que puxavam os carros funerários. "Os ajustes fiscais no Brasil priorizam não a eficiência econômica, mas a arrecadação", diz Cunha Pontes. Para ele, desde a década de 90, o país rompeu com a doutrina clássica da disciplina e passou a tributar o faturamento das empresas, mesmo quando não há lucro.
Pelo relatório da Receita Federal, verifica-se que de 2007 para 2008, seguindo uma tendência histórica, a rubrica que mais cresceu foi a de tributos sobre bens e serviços, ou seja os impostos indiretos, que todos pagam ao comprar um produto. A variação foi de um ponto percentual, enquanto as rubricas renda, com 0,62, folha de salários, com 0,34 e propriedade, com 0,05 cresceram de modo mais modesto. "Precisamos atacar os gargalos da competitividade, e a carga tributária é um deles", diz o consultor José Júlio Senna, da MCM Associados.
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, já declarou que a redução dos custos financeiros e tributários é fundamental para viabilizar o novo ciclo de crescimento do país. Segundo ele, o governo vem fazendo isso por meio das desonerações que vão alcançar cerca de R$ 100 bilhões no período 2005-2009. Somente em 2009, serão R$ 25 bilhões a menos na arrecadação federal. Além da venda de automóveis e de eletrodomésticos da linha branca, a desoneração beneficiou também os itens básicos setor da construção civil. As taxas de juros do BNDES caíram para 4,5%.
Os alicerces do atual sistema tributário brasileiro foram construídos na década de 1960. A Constituição de 1988 mudou alguns impostos e aprofundou a descentralização para atender aos Estados e municípios, que passaram a receber parte do bolo, por meio de repasses. Da arrecadação do Imposto de Renda e do IPI, 47% ficam com a União e 53% vão para os governos estaduais e municipais. Para aumentar sua fatia, o governo federal criou novos tributos, como Cofins e Contribuição Social Sobre Lucro Líquido (CSLL), sobre os quais não há divisão.
Estudo feito pelo Iedi aponta que essa remodelação teve como orientação um novo modelo de crescimento voltado para o consumo interno. "A economia se abriu ao exterior e o sistema tributário não mudou, pelo contrário, se tornou ainda mais apropriado a uma economia fechada, por explorar cada vez mais tributos indiretos e cumulativos". De acordo com o estudo, se o Brasil quiser consolidar e modernizar um parque industrial diversificado e com alta densidade tecnológica, "é premente e imprescindível reformar a tributação indireta no país, incluindo a adoção de um pleno e efetivo imposto sobre o valor adicionado".
A proposta de reforma tributária do governo vai nessa linha, embora não preveja uma redução da carga de impostos. O tema, sempre quando discutido, remete à condução da política fiscal. A opinião corrente entre empresários e setores mais liberais é de que a ineficiência do gasto público leva necessariamente a uma carga maior de impostos. Logo, se o governo reduzisse seus gastos correntes, sobraria mais para investimentos e - com menor necessidade de financiamento para suportar a máquina - os juros também cairiam.
O economista Felipe Salto, da Tendências Consultoria, faz as contas e mostra que, num período de 12 meses, o governo dispõe de 1% do PIB para investir, enquanto o custeio da máquina administrativa - sem contar gastos com pessoal e Previdência - exige 3% do PIB, o que corresponde a R$ 84 bilhões. "Um corte nessas despesas permitiria mais investimento", diz Salto. O Bolsa Família, por exemplo, custa R$ 15 bilhões por ano e, na opinião do economista, é um exemplo de programa bom e barato.
A economia feita com o corte no custeio poderia também, segundo o economista, engordar os recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). "Hoje a maior fatia do orçamento do PAC vem das estatais e do setor privado, a parte do governo não chega a 5% do total destinado ao programa", diz. Com relação a gastos com pessoas e encargos sociais, falta, segundo Salto, um planejamento de longo prazo. "Não se trata de paralisar as contratações, mas de fazer concursos para as áreas que de fato necessitam mais pessoal", afirma.
"A questão é escolher o tamanho do Estado que queremos", diz Maurício Oreng, analista econômico do Itaú Unibanco. Segundo ele, o ajuste feito na virada de 1998 e 1999 para elevar o superávit primário (resultado de receita e despesa antes do pagamento de juros) deu ênfase à maior arrecadação tributária, que cresceu dez pontos percentuais desde então. "O mesmo nível de superávit nas contas do governo poderia ter sido obtido com menos despesa e impostos, o que beneficiaria a taxa de câmbio", explica. Oreng também aponta que a política fiscal mais frouxa fez crescer o gasto com custeio sobretudo em 2009.
Como houve uma queda na arrecadação, a partir de outubro de 2008, por causa da crise, ele avalia que a questão crucial agora é saber se essa redução foi apenas momentânea ou se foi estrutural. "Se o país crescer 4% a 5% como está previsto, a arrecadação também vai subir", diz. José Roberto Afonso observa, no entanto, que o crescimento do país será prejudicado se a arrecadação subir mais que o PIB. "O governo vai ter que aprender a conviver com uma carga tributária menor", diz.
Pelo que dizem os economistas, criou-se uma espécie de dilema. "O governo precisa abrir espaço para os investimentos. Ou ele investe e reduz o superávit primário ou deixa o setor privado investir, criando condições para isso com juros mais baixos, menos impostos e câmbio mais alto", diz Fernando Montero, da Corretora Convenção. Para ele a carga tributária alta não deixa o setor privado investir. A preços de hoje, segundo o economista, os gastos do governo entre 2002 e 2009 aumentaram R$ 266,8 bilhões. A parte de investimentos não chega a R$ 15 bilhões desse total. Outros R$ 53,2 bilhões se referem a maiores transferências a Estados e municípios. Os gastos correntes, incluindo aposentadorias, programas sociais e custeios diversos totalizam R$ 198,9 bilhões - basicamente direcionados à renda e ao consumo.
De acordo com a organização não governamental Contas Abertas, o governo federal investiu R$ 22,763 bilhões de janeiro a outubro, 21,9% a mais do que no mesmo período do ano passado. À primeira vista, uma elevação expressiva, mas é um ritmo de alta bastante inferior ao registrado em igual intervalo de 2008, quando os investimentos cresceram 50,9% sobre janeiro a outubro de 2008.
Numa situação de crise, incentivar o consumo faz todo sentido. Insistir nessa escolha, na opinião dos analistas, pode ser arriscado e comprometer o crescimento de longo prazo. As projeções indicam que o superávit primário deverá ser reduzido e ficar em 2,5% do PIB em média. Para Oreng, do Itaú Unibanco, o ideal seria a manutenção de um superávit alto por mais quatro a cinco anos, abatendo de forma mais rápida a dívida líquida do governo, hoje em 44,1% do PIB. Essa poupança garantiria o desenvolvimento sustentado no longo prazo. A tendência, segundo o analista econômico, é de que não haja corte nos impostos e se mantenha as despesas. "O custo disso é onerar as empresas e prejudicar os investimentos", diz.
A falta de poupança interna levará necessariamente o país a depender de recursos externos, elevando o déficit nominal dos atuais 3,3% para 5%. Fernando Montero observa que a taxa de investimento (público e privado) caiu de 19% para 16,5% depois da crise. "Saímos da recessão puxados por consumo e gastos correntes ocupando a fatia de um investimento deprimido", diz. Agora, segundo ele, o consumo precisa devolver o lugar que tomou do investimento em máquinas, construção e estoques. "Em outras palavras, precisamos retomar o esforço de poupança. O problema é que, com crédito e gastos fiscais crescendo bem acima do PIB, ocorrerá provavelmente o contrário: sairemos da recessão consumindo mais, e não menos, de nossa renda".
Para Montero, o Brasil exibe melhores condições do que em 1998 para aumentar sua dependência do capital externo. Há mais entrada de capital produtivo do que especulativo - esse com mais restrições impostas pelo governo por meio de aumento do IOF. A questão, segundo ele, é o baixo volume do comércio internacional. "Economias como a brasileira que apresentam movimentos de exportações e importações inferiores a 50% do PIB não suportam um déficit superior a 5%", explica.
Para o consultor José Julio Senna, o maior desafio do governo é fazer a gestão das finanças públicas com um cobertor curto. Com um espaço pequeno para ajustes, em função da rigidez do gasto público imposta pela Constituição, cada vez mais é importante preservar a qualidade das despesas, privilegiando os investimentos. Dessa agenda faz parte não só a reforma tributária mas também a reforma da Previdência. Segundo as projeções do orçamento de 2010, o déficit no setor vai passar de R$ 43 bilhões para R$ 48 bilhões em 2010. A Previdência pagou em 2008 benefícios num total de R$ 262 bilhões.
Para os economistas, o governo demonstra excesso de confiança sobre a perspectiva de recuperar os níveis de arrecadação de 2008. As operações de capitalização do BNDES (R$ 100 bilhões) e da Caixa Econômica Federal (R$ 6 bilhões) devem trazer um custo fiscal de R$ 10 bilhões ao ano. "Esse é um risco próprio da decisão política de maior intervenção do Estado. O importante agora é solidificar os fundamentos da economia e adotar políticas que estimulem o crescimento de longo prazo", afirma Oreng. >
|