Imaginava-se, em face do que os membros do atual governo preconizavam quando na oposição, uma tributação menos gravosa sobre a produção e sobre o trabalho. O que temos é uma política tributária que privilegia o capital especulativo em detrimento da produção e do trabalho.
Hugo de Brito Machado Segundo
Impacto da
Emenda Constitucional nº 42
Carta Forense - Sob sua ótica, como está sendo a política tributária do atual governo?
Hugo de Brito Machado Segundo - Muito parecida com a do anterior. Imaginava-se, em face do que os membros do atual governo preconizavam quando na oposição, uma tributação menos gravosa sobre a produção e sobre o trabalho. No âmbito da seguridade social, esperava-se que não fossem tributados os aposentados, que não se prorrogasse a tão combatida DRU (Desvinculação de Receitas da União), e que se desse cumprimento ao disposto no art. 165, § 5.º, III, da CF/88, com a criação de um orçamento autônomo para a seguridade social, ao qual deveriam ser destinadas todas as contribuições que têm por finalidade custeá-la. Nada disso foi feito, tendo-se mantido uma política tributária que privilegia o capital especulativo em detrimento da produção e do trabalho.
CF O senhor acha que a Emenda Constitucional feriu os direitos individuais dos contribuintes?
HBMS - Considerados os seus dispositivos de maneira pontual, literal e isolada, a emenda talvez não tenha trazido restrições a direitos individuais. Muitas de suas disposições, aliás, são benéficas aos interesses do contribuinte. É o caso da autorização para um simples nacional, da ampliação da imunidade das exportações ao ICMS e da alteração no dispositivo referente à anterioridade da lei tributária.
Apesar disso, a emenda trouxe dispositivos que, vistos de forma global, representam mais uma etapa na completa subversão que se está fazendo no sistema tributário nacional. Falo das contribuições, que estão sendo desvirtuadas de sua finalidade, e gradativamente substituindo impostos federais.
A Constituição, originalmente, definiu os impostos como a principal fonte de receitas tributárias. Por isso, instituiu uma série de limitações à sua instituição. E dividiu a competência para instituí-los entre a União, os Estados e os Municípios. Atribuiu a maior parte dos impostos à União, mas determinou que os mais expressivos tivessem sua arrecadação partilhada com Estados, Distrito Federal e Municípios. As contribuições, por sua vez, são em regra instituídas apenas pela União (com exceção da CIP e da contribuição destinada ao custeio da aposentadoria de servidores). Não são partilhadas com Estados e Municípios, e nem se submetem a várias limitações aplicáveis aos impostos. Afirma-se, porém, que essa espécie tributária tem em sua finalidade o principal limite ao poder de instituí-la: as contribuições somente poderiam ser destinadas ao atendimento de certas finalidades, e teriam no custo destas finalidades a dimensão do que seria possível arrecadar com elas.
Como as principais contribuições, previstas na Constituição, destinam-se ao custeio da seguridade, a União não teria interesse abusar dessa espécie tributária. Isso porque a arrecadação assim obtida seria destinada a outro orçamento, diferente e autônomo em relação ao orçamento fiscal (CF/88, art. 165, § 5.º, III). O problema é que esse dispositivo é violado todos os anos. A União faz um orçamento autônomo apenas para a previdência, e a ele destina apenas as contribuições arrecadadas em favor do INSS (que por isso segue sempre deficitário). Com isso, COFINS, PIS, CSLL e CPMF são destinadas ao orçamento fiscal da União, e terminam sendo aplicadas em outras finalidades. Tanto que a União apresenta seguidos superávits primários, gerados principalmente por conta dessas contribuições (que respondem pela maior parte do aumento de carga tributária federal verificado nos últimos quinze anos), mas a seguridade social segue sempre falida.
Pois bem. A EC 42/2003 possibilitou que PIS e COFINS incidam na importação, e sejam cobradas de forma não-cumulativa. Com isso, tais contribuições assumiram feição de verdadeiro imposto sobre o valor agregado, um IVA-Federal. E, para completar, prorrogou-se a DRU (Desvinculação de Receitas da União), em face da qual se autoriza a aplicação, explícita e expressa, dos recursos arrecadados com tais contribuições em finalidades diversas daquelas que motivaram a sua instituição.
Com isso, as contribuições só têm esse nome quando se trata de arrecadar um tributo não submetido a limitações próprias dos impostos, e que não é dividido com Estados e Municípios. Uma vez arrecadada, a contribuição se transforma em imposto. Prejudica-se, com isso, o contribuinte, que vê dribladas muitas limitações constitucionais aplicáveis aos impostos e não às contribuições; o segurado, que não recebe seus benefícios, ou não os têm atualizados, porque supostamente não há recursos para tanto; e os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios, que vêem diminuir, a cada ano, a sua participação na arrecadação federal.
É verdade que os Estados e os Municípios, percebendo que estavam sendo lesados, obtiveram, com a EC 42/2003, direito de receber 25% da arrecadação da CIDE-Combustíveis. Mas se trata de algo irrisório se se considerar, primeiro, que a venda de combustíveis representa base imponível antes tributada apenas pelos Estados (com o ICMS), e, segundo, que a CIDE-combustíveis representa arrecadação muito pequena se comparada com o volume propiciado por CPMF, COFINS, PIS e CSLL, estas não partilhadas.
CF Em que situação fica o princípio da anterioridade tributária com advento da Emenda 42/03?
HBMS - Introduziu-se, em relação aos tributos em geral (com algumas exceções, previstas no art. 150, § 1.º, da CF/88), a chamada anterioridade nonagesimal, ou noventena, antes prevista apenas para as contribuições de seguridade social.
Trata-se de exigência adicional, que se soma à anterioridade da lei ao exercício financeiro. Além de o tributo somente poder ser exigido a partir do exercício seguinte ao da publicação da lei, essa cobrança não pode ocorrer antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que o instituiu ou aumentou. São dois prazos que devem ser cumpridos paralela e cumulativamente: a espera pelo exercício seguinte e o transcurso de noventa dias (CF/88, art. 150, III, c).
Se a lei que cria ou aumenta o tributo é publicada mais de noventa dias antes do final do exercício (p. ex., em agosto), sua vigência poderá iniciar-se logo no primeiro dia do exercício seguinte, pois até então já terá transcorrido o prazo de noventa dias exigidos pela alínea c do art. 150, III, da CF/88. Entretanto, se a lei é publicada faltando menos de noventa dias para o final do exercício, mesmo depois de iniciado o exercício seguinte será preciso esperar o término do prazo dos noventa dias. Exemplificando, publicada a lei em 31 de dezembro de um ano, somente poderão ser tributados os fatos ocorridos a partir de abril do ano seguinte; publicada em 30 de novembro, sua vigência somente poderá ter início em março do ano seguinte, e assim por diante.
CF - Qual o impacto no Imposto de Renda?
HBMS - Decorrente da alteração na regra da anterioridade, nenhum. Isso porque o imposto de renda é uma das exceções à anterioridade nonagesimal, agora aplicável aos tributos em geral (CF/88, art. 150, § 1.º).
A circunstância de o IR haver sido excepcionado é até uma contradição, pois é no âmbito do imposto de renda que se utiliza com maior freqüência do expediente abusivo que a introdução da regra da noventena visou a evitar: a impressão, nas últimas horas de 31 de dezembro, de edição extraordinária do diário oficial, que somente circula em janeiro do ano seguinte, mas que é considerada pelo STF como suficiente para atender a anterioridade em relação ao exercício.
CF - Qual seu entendimento acerca das alterações em relação ao IPI?
HBMS - Curiosamente, o IPI não fora excepcionado da regra da anterioridade nonagesimal, como o é em relação à anterioridade do exercício. Assim, alterações no disciplinamento jurídico desse imposto que impliquem majoração, ainda quando efetuadas pelo próprio Poder Executivo, dentro dos limites permitidos por lei para a fixação de alíquotas (CF/88, art. 153, § 1.º), deverão aguardar o transcurso de pelo menos noventa dias, contados da publicação da norma, para produzir efeitos jurídicos.
CF - Que benefícios trouxeram aos municípios as regras que alteraram as disposições sobre o ITR?
HBMS - Caso manifestem opção nesse sentido, os Municípios poderão fiscalizar e arrecadar o ITR, hipótese na qual farão jus a 100% da receita arrecadada (e não apenas a 50%, como ocorre ordinariamente).
Isso mostra que a principal função do ITR é extrafiscal. A União, com ele, não está muito preocupada com a arrecadação, mas com o desestímulo à manutenção de propriedades rurais improdutivas. Por outro lado, a fiscalização desse imposto é mais difícil para a União, dada a distância entre as repartições ficais federais e muitas das propriedades rurais submetidas à tributação, sendo mais fácil para o Município no qual o terreno rural estiver sediado.
Mas a vantagem para o Município não é tão grande assim, pois a arrecadação propiciada pelo ITR não é significativa.
CF - Em relação ao Princípio da Não Afetação o que a emenda atingiu?
HBMS - A emenda fez uma alteração inusitada no art. 167, IV, da CF/88, que cuida da não afetação da receita obtida com impostos a despesas específicas. Está relacionada ao art. 37, XXII, da Constituição, também produto da EC 42/2003. Afirma esse artigo que os órgãos da administração tributária da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios terão recursos prioritários para o desempenho de suas atividades.
Parece-nos, porém, que essa disposição encerra um equívoco. Não se pode destinar a receita pública, prioritariamente, para a obtenção de mais receita pública. O Estado não é feito para arrecadar, mas para fazer valer a ordem jurídica e atender as necessidades da coletividade. A arrecadação é importante, mas sempre como um meio, que só se legitima por conta do fim a que se destina.
Insisto que não estou a dizer que a atividade desenvolvida pela administração tributária não seja importante. De forma alguma. O problema é elegê-la como algo prioritário, mais importante, por exemplo, que a construção de estradas, ou o investimento em segurança pública. De acordo com o termo prioritário, empregado pela EC 42/2003, na carência de recursos, a recuperação de uma estrada seria preterida em favor de um melhor aparelhamento do Fisco, o que soa como uma inversão dos fins do Estado. Não podemos esquecer que um aumento na arrecadação não é obtido apenas com a melhoria da administração tributária, mas com o incremento da economia, que passa a gerar e circular maior quantidade de riquezas. Assim, a prioridade do Estado não pode ser o financiamento da própria arrecadação.
CF O aumento da Cofins, CIDE e outras incidências poderão trazer algumas complicações?
HBMS - Sim. Aliás, não apenas poderão: já estão trazendo.
Mas primeiro é importante destacar que a Constituição não cria, nem aumenta, tributos. Apenas outorga competência para que os entes tributantes (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) o façam. Assim, a EC 42/2003 não propriamente aumentou essas contribuições, embora tenha criado condições para que sejam aumentadas, ao viabilizar sua incidência na importação, dispor sobre sua incidência não-cumulatividade etc.
O aumento das contribuições traz complicações de suas ordens. A primeira decorre da novidade representada por essa espécie tributária (se comparada aos impostos), e da incerteza que ainda existe, na doutrina e na jurisprudência, a respeito de seu regime jurídico. A segunda decorre da introdução da sistemática da não-cumulatividade, no âmbito da COFINS e do PIS. A não-cumulatividade é uma sistemática complexa, por meio da qual o montante devido em uma operação é compensado do que houver sido cobrado em operações anteriores. Nesse contexto, os contribuintes, de um lado, passam a pleitear o direito de creditamento em relação a operações anteriores (de forma nem sempre devida), de forma a minorar o impacto de um brutal aumento de alíquotas; o Fisco, de outro, na tentativa de conter possíveis fraudes, e aumentar a arrecadação, realiza uma série de restrições (nem sempre razoáveis) ao direito ao uso do crédito. Tal conflito de interesses pode ser observado deste a feitura da lei, até a sua aplicação concreta pela autoridade administrativa e pelos órgãos de julgamento. O ICMS é exemplo disso, sendo relevante lembrar que o PIS e a COFINS incidem sobre base muito mais ampla (receita bruta) do que esse imposto.
CF A norma que disciplina a atribuição de tratamento favorecido às empresas de pequeno porte é de fato mais benéfica para a sociedade?
HBMS - Depende de como for regulamentada. A novidade trazida pela emenda, no caso, está na possibilidade de esse tratamento tributário diferenciado ser feito de maneira global, envolvendo tributos federais, estaduais e municipais. Desde que por lei complementar, portanto, a União pode criar um simples nacional, o que poderá ser muito proveitoso para o pequeno empresário, ao reduzir a complexidade e a burocracia inerentes ao cumprimento de obrigações tributárias. Entretanto, a fixação de um percentual muito elevado (todos os tributos inseridos no tal simples são substituídos por um percentual incidente sobre a receita do contribuinte), ou o estabelecimento de exigências muito rigorosas para o ingresso no programa podem esvaziar os benefícios por ele trazidos.
De qualquer forma, é importante lembrar que, como todo regime diferenciado, o tal simples nacional será de adesão facultativa por parte do contribuinte. Assim, se a regulamentação for muito rigorosa, o propósito de dar tratamento privilegiado para a pequena empresa será desprezado, o que é muito ruim, mas pelo menos restará ao contribuinte a opção de a ele não se submeter.
CF - Como fica a situação do ICMS com a EC42?
O disciplinamento constitucional do ICMS sofreu poucas alterações com a EC 42/2003. Talvez o governo tenha pretendido fazer alterações mais significativas, mas não obteve maioria no Congresso, em face de profunda divergência de interesses entre Estados-membros.
HBMS - Com a EC 42, as exportações foram beneficiadas com imunidade mais ampla ao ICMS. Antes, a imunidade era concedida apenas às operações de exportação de produtos industrializados, sendo facultado à lei complementar estender o benefício, por meio de uma isenção heterônoma excepcionalmente autorizada, a outros produtos e serviços. Com o advento da EC 42, todo tipo de operação ou prestação destinada ao exterior passou a gozar de imunidade ao ICMS. Outra alteração diz respeito ao dispositivo que explicita a não incidência do imposto sobre a radiodifusão de sons e imagens gratuita (TV aberta e rádio).
Ainda em relação ao ICMS, a EC 42 autorizou os Estados e o Distrito Federal a majorá-lo em dois pontos percentuais, em relação a produtos supérfluos, e a destinar o produto da arrecadação assim obtida a um fundo de combate a pobreza (FECOP). A iniciativa é louvável, mas o paradoxal é que o referido aumento tenha sido efetuado em relação ao ICMS incidente sobre energia elétrica, combustíveis e serviços de comunicação, como se estes itens fossem supérfluos. Considero flagrantemente inconstitucionais as leis dos Estados que assim procederam, pois a expressão supérfluo foi utilizada no texto constitucional com algum sentido, o qual, por mais vago que possa ser, não engloba produtos e serviços indispensáveis ao funcionamento da sociedade contemporânea.
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