JUIZ CONCEDE LIMINAR PARA EDUARDO JORGE TER ACESSO AO INQUÉRITO SOBRA A QUEBRA DO SEU SIGILO FISCAL
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO
SEÇÃO JUDICIÁRIA DO DISTRITO FEDERAL 8ª VARA
MS n° 36.186-90.2010.4.01.3400
Processo n. 36.186-90.2010.4.01.3400 - Classe 2100 - Mandado de Segurança Individual
Impetrante : Eduardo Jorge Caldas Pereira
Impetrado : Corregedor-Geral da Secretaria da Receita Federa! do Brasil
Juiz Federal : Antônio Cláudio Macedo da Silva
DECISÃO
EDUARDO JORGE CALDAS PEREIRA, qualificado na inicial, impetra MANDADO DE SEGURANÇA, com pedido de medida liminar, contra ato atribuído ao CORREGEDOR-GERAL DA SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL objetivando ser-lhe garantido o acesso aos autos de processo administrativo em trâmite na Secretaria da Receita Federal e que visa apurar a quebra do sigilo fiscal do impetrante.
Relata, em síntese, o impetrante que foi surpreendido com cópia de sua Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda Pessoa Física - DIRPF publicada em jornal de grande circulação e que, supostamente, integraria um dossiê produzido por pessoas ligadas ao processo eleitoral em curso no País.
Relata, ainda, o impetrante que, a partir da publicação referida, a Secretaria da Receita Federal divulgou nota à imprensa informando a instauração de sindicância para a apuração do vazamento do sigilo fiscal.
Aduz que, não obstante a existência da referida sindicância, a autoridade impetrada, em duas oportunidades, negou-lhe acesso aos autos, indeferindo pedido de vista e cópias por ele formulado, ao fundamento de sigilo do processo administrativo.
Por fim, reclama o impetrante que, apesar do sigilo alegado pela autoridade indigitada coatora, elementos extraídos do procedimento administrativo da Receita Federal vêm sendo divulgados pela imprensa diariamente, daí por que pede tutela de urgência para que tenha acesso aos autos da sindicância e/ou processo administrativo que apura(m) a quebra do seu sigilo fiscal com o desiderato de resguardar seus interesses.
Junta o autor procuração e documentos de fls. 09/29.
Em atuação episódica nos autos, em razão de férias deste Magistrado, o eminente Juiz Federal Substituto desta 8ª. Vara, Dr. Tales Krauss Queiroz, reservou-se para apreciar o pedido de tutela de urgência após as informações da autoridade impetrada.
Às fls. 38/42, a autoridade impetrada prestou informações alegando, em síntese: (1) que, diante dos fatos ocorridos na imprensa nacional, instaurou sindicância investigativa (processo administrativo n° 10167.001386/2010-16); (2) que a referida sindicância resultou na instauração de processo administrativo disciplinar (PAD n° 16302.000128/2010-99); (3) que o artigo 150 da Lei 8.112/90 assegura o sigilo necessário á elucidação do fato ou exigido pelo interesse da Administração; (4) que a Corregedoria-Geral decidiu pela análise do pedido de cópias ao final do processo administrativo disciplinar; (5) que o principal interessado na apuração da violação de sigilo fiscal é a própria Administração Pública e que o acesso aos autos do PAD poderia trazer danos ao interesse público, bem como implicar em perículum in mora inverso, pois no curso da apuração poderiam surgir dados fiscais de terceiros.
Por fim, pugna pela denegação da medida liminar, ao argumento de que a tutela de urgência possui caráter satisfativo, e, por conseguinte, estaria interditada pelo comando do artigo 1°, § 3o, da Lei 8.437/92.
Após, vieram-me os autos conclusos para exame da tutela de urgência.
Sucintamente relatados, decido.
A res in iudicium deducta faz lembrar a primeira frase da obra The Trial [O Processo], de FRANZ KAFKA, na tradução de Idris Parry, editada pela Coleção Modern Ciassics da Penguin Books:
Somebody must have made a false accusation against Josef K., for he was arrested one morning without having done anything wrong.
[The Trial, Penguin Books, Modern Classics, Der Prozess first published in Germany 1925, Translation by Idris Parry first published 1994, reprinted in Penguin Classics 2000, p. 1.]
Da leitura destes autos veio a este Magistrado a primeira linha da obra de Kafka, a substanciar a lógica do absurdo de que tratam os presentes autos.
Com efeito, deve ser uma sensação próxima à do personagem Josef K. aquela experimentada pelo impetrante. Imaginemos qualquer um de nós levantarmos pela manhã e enquanto saboreamos calmamente um café - como costuma fazer este Magistrado - com os olhos pregados no jornal matutino, vemos estampada no periódico de maior circulação do País a nossa Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda Pessoa Física - DIRPF.
Não sei se me sentiria desnudado, ultrajado ou ambos os sentimentos invadiriam o meu ser. De plano com certeza me lembraria do Leviathan hobbesiano (Leviathan, THOMAS HOBBES) ou do Big Brother GEORGE ORWELL em 1984.
A primeira pergunta seria: que Estado é esse?
Na era da tecnologia da informação, o próprio Estado reconhece em duas notas públicas (cf. fls. 14 e 15 dos autos) a excelência de seus sistemas de segurança das informações e admite que a quebra de sigilo ocorreu dentro do âmbito da própria Administração Pública e, ao mesmo tempo, a autoridade impetrada nega vista dos autos ao impetrante ao singelo argumento de que "o principal interessado na apuração da violação de sigilo fiscal é a própria Administração Pública..." (sic, fls. 41)!
E os direitos fundamentais do cidadão à intimidade e à vida privada?
E a autoridade impetrada ainda se prende a argumentos formais sobre a concessão de tutela de natureza cautelar satisfativa, argumentando que há vedação legal para tanto no artigo 1o, § 3o, da Lei 8.437/92.
Tal dispositivo seria flagrantemente inconstitucional se não for interpretado conforme à Constituição, pois qualquer interpretação literal, a interditar a efetividade da tutela jurídica, amesquinharia o Judiciário, cuja razão de ser é exatamente garantir os direitos fundamentais, bem como participar dos mecanismos de checks and balances [freios e contrapesos] que a divisão tripartite das funções estatais visa assegurar como forma de preservação da própria democracia.
Lembre-se, nesse diapasão, JAMES MADISON, no Federalist Paper n. 51:
But the great security against a gradual concentration of the several powers in the same department, consists in giving to those who administer each department, the necessary constitutional means, and personal motives, to resist encroachments of the others. The provision for defence must in this, as in all other cases, be made commensurate to the danger of attack. [...] It may be a reflection on human nature, that such devices should be necessary to control the abuses of government. But what is government itself but the greatest of all reflections on human nature? If men were angels, no government would be necessary. If angels were to govern men, neither external nor internal controls on government would be necessary. [HAMILTON, Alexander. MADISON, James. JAY, John. The Federalist.]
Resta a mesma conclusão do federalista JAMES MADISON: se fôssemos anjos governados por anjos, para quê governo e divisão de poderes?
Bem se vê que não há anjos, nem na Pública Administração nem entre os administrados, mas homens com o que a linguagem jurídica norte-americana classificaria como vested interests, é dizer, com interesses constituídos.
Outrossim, a dicção propugnada pela autoridade impetrada quanto à exegese do artigo 150 da Lei 8.112/90 é de uma fragilidade a toda prova, pois não esclarece qual a necessidade do sigilo em face da vítima para que o fato possa ser elucidado, nem tampouco qual interesse público ou sigilo de terceiros poderia ser afetado.
Ademais, qualquer dado sigiloso de terceiros que a vítima possa ter conhecimento em razão de acesso aos autos tem ela o dever de manter em sigilo, por óbvio.
Não se pode admitir um Estado Leviatã, no qual tudo que é sigiloso vaza para a imprensa, a exemplo de processos e investigações criminais, bem como dados derivados de quebra judicial de sigilos fiscal, bancário, telefônico e telemático, os quais têm sido veiculados indevidamente, ainda que legalmente protegidos por hipótese de sigilo.
Outrossim, não se pode passivamente aceitar a constatação de FIÓDOR
DOSTOIEVSKI, na célebre obra OS IRMÃOS KARAMÁZOV:
Pensando bem, seria estranho exigir clareza das pessoas numa época como a nossa. (DOSTOIEVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamazov. São Paulo: Ed. 34, vol. I, p. 13.)
Com toda a licença a DOSTOIEVSKI, com o qual este Magistrado ousa discordar, OU EXIGIMOS CLAREZA, OU ENTÃO VIVEREMOS MAIS E MAIS OS PARADOXOS daquilo que ERIC HOBSBAWN denominou A ERA DOS EXTREMOS (cf. The Age of Extremes, First Vintage Books Edition, February 1996), cheia de holocaustos, e, no caso em tela, o holocausto oferecido é a própria dignidade humana, que não pode sequer ter a sua intimidade resguardada pelo Estado, o qual deve garantir a proteção aos dados relativos ao sigilo fiscal dos contribuintes.
Será que mal adentramos o século XXI e iremos reeditar uma das mais tristes características desse short century XX [curto século XX] como denominou HOBSBAWN, ou seja, o esquecimento e destruição da memória do passado? A propósito, o excerto de HOBSBAWN:
the destruction of the past, or rather of the social mechanisms that link one's contemporary experience to that of earlier generations, is one of the most characteristic and eerie phenomena of the late twentieth century." [Op. cit., p. 3.]
Basta lembrar do que o Estado que nada quer compartilhar, que se sente acima do bem e do mal [a ponto de entender que à vitima não importa acompanhar a instrução do processo administrativo de apuração de um delito que foi praticado em seu desfavor, pois o Estado, como um grande pai saberá o que é melhor para todos, porque o interesse público - que nem mesmo o próprio Estado sabe precisar os contornos - esta acima de tudo] foi capaz de fazer em nome da aplicação da lei durante o curto século XX, no qual presenciamos tantos ataques à dignidade humana.
Tal atitude da Pública Administração, alegando um interesse público genérico e amorfo resvala no que ANTHONY GIDDENS define como authoritarianism [autoritarismo], a saber:
Whereas democracy encourages the active involvement of citizens in political affairs, in authoritarian states popular participation is denied or severely curtailed. In such societies, the needs and interests of the state are prioritized over those of average citizens and no legal mechanisms have been established for opposing government or for removing a leader from power. [Sociology, 4th ed., London: Polity, 2001, p. 424.] [Destaque nosso.]
Com toda a certeza não é este o Brasil que foi desenhado na Carta de 1988, a qual substancia a certidão de nascimento de um Estado Democrático de Direito que garante a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental (CF/88, art. 1°, inc. III).
Neste caso, urge a concessão da tutela de urgência vindicada pelo impetrante, pois pode-se fazer no Brasil, no que pertinente aos excessos de vazamentos de dados sigilosos para a imprensa, vindos de setores públicos que deveriam guardá-los, uma pertinente analogia até porque, em tese, onde há quebra indevida de sigilo fiscal há delito tipificado na lei penal - com uma das teorias sociológicas que procuram explicar o aumento da criminalidade, qual seja a theory of broken windows, ou teoria das janelas quebradas.
A propósito desta teoria escreveu GIDDENS:
[...] Set forth nearly two decades ago (Wilson and Kelling 1982), the theory suggests that there is a direct connection between the appearance of disorder and actual crime. If a single broken window is allowed to go unrepaired in a neighbourhood, it sends a message to potential offenders that neither police nor local residents are committed to the upkeep of the community. In time, the broken window will be joined by further signs of disorder - graffiti, litter, vandalism and abandoned vehicles. The area will begin a gradual process of decay in which 'respectable' residents will seek to leave and will be replaced by 'deviant' newcomers such as drug dealers, the homeless and people on parole. [Op. cit, p. 214.)
A teoria das janelas quebradas [theory of broken windows] embasou as chamadas políticas de tolerância zero [zero tolerance policy], aplicadas no policiamento de grandes cidades nos Estados Unidos, cujo maior exemplo foi Nova York sob o comando do prefeito Rudolph Giuliani.
Penso que o Brasil convive há muito tempo com janelas quebradas na
vizinhança da proteção ao sigilo, havendo uma relação promíscua entre alguns setores da Administração Pública e alguns setores da imprensa, na qual se veiculam informações protegidas por sigilo legal sem que se saiba a autoria da quebra nem tampouco haja indignação da sociedade como um todo, a qual parece conviver com tranqüilidade com esse fenômeno.
Mas isso são como janelas quebradas em uma vizinhança, pequenas desordens no arcabouço da democracia representativa, a exigir uma política de tolerância zero por parte da própria Administração Pública e do Poder Judiciário.
Como pode o processo de apuração da quebra do sigilo fiscal do impetrante ser sigiloso somente para ele, pois todos os dias há inúmeras informações acerca das apurações da Corregedoria da Receita Federal nos jornais, como provam as incontáveis matérias jornalísticas vistas às fls., 45/274, substanciando a contínua exploração pública da violação do sigilo do impetrante?
Ante o exposto, presentes os requisitos legais, DEFIRO A MEDIDA LIMINAR para que o impetrante tenha acesso a todo e qualquer processo e/ou procedimento administrativo preordenado à apuração dos fatos relacionados com a quebra do seu sigilo fiscal, não somente podendo extrair cópias integrais, como também podendo acompanhar todo o processo e/ou procedimento, constituir advogado para a defesa dos seus interesses, bem como formular requerimentos para a salvaguarda dos seus direitos, ficando sob sua responsabilidade eventuais informações obtidas em razão do acesso aos autos e que estejam protegidas sob o manto de hipótese legal de sigilo.
Notifique-se o impetrado para imediato cumprimento do decisum, no prazo de duas horas, contados da intimação.
Após, remetam-se os autos ao Ministério Público Federal.
Intime-se.
Brasília - DF, 23 de agosto de 2010.
Antônio Claudio Macedo da Silva
Juiz Federal Titular- 8ª Vara
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