24/11/2010 TRIBUNAL PLENO
MED. CAUT. EM AÇÃO CAUTELAR 33 PARANÁ
V O T O
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Reconheço,
preliminarmente, que se acham presentes, na espécie, os requisitos
autorizadores do exercício, por esta Suprema Corte, do poder geral
de cautela, circunstância essa que confere plena legitimidade
jurídica à decisão proferida pelo eminente Relator do processo.
Como se sabe, a concessão de medida cautelar, pelo
Supremo Tribunal Federal, quando requerida na perspectiva de recurso
extraordinário interposto pela parte interessada, quer se busque a
outorga de efeito suspensivo ao apelo extremo, quer se pretenda a
sustação da eficácia do acórdão impugnado, supõe, para legitimar-se,
a conjugação necessária dos seguintes requisitos: (a) que tenha sido
instaurada a jurisdição cautelar do Supremo Tribunal Federal
(existência de juízo positivo de admissibilidade do recurso
extraordinário, consubstanciado em decisão proferida pelo Presidente
do Tribunal de origem ou resultante do provimento do recurso de
agravo); (b) que o recurso extraordinário interposto possua viabilidade
processual, caracterizada, dentre outras, pelas notas da tempestividade, do
prequestionamento explícito da matéria constitucional e da ocorrência de
ofensa direta e imediata ao texto da Constituição; (c) que a postulação
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de direito material deduzida pela parte recorrente tenha plausibilidade
jurídica; e (d) que se demonstre, objetivamente, a ocorrência de
situação configuradora do periculum in mora (RTJ 174/437-438, Rel.
Min. CELSO DE MELLO, v.g.).
Não custa rememorar, no ponto, que a instauração da
jurisdição cautelar do Supremo Tribunal Federal pressupõe, em regra,
e no que se refere à concessão de efeito suspensivo, a existência de
juízo positivo de admissibilidade do apelo extremo, proferido pela
Presidência do Tribunal a quo ou resultante do provimento do
recurso de agravo (RTJ 191/123-124 - Pet 2.503/DF, Rel. Min. CELSO DE
MELLO, v.g.).
Vale enfatizar, consideradas as circunstâncias da
espécie ora em exame, que o litígio instaurado na causa principal
tornava necessária a concessão, pelo Supremo Tribunal Federal, da
tutela de urgência que, postulada em sede cautelar, foi corretamente
deferida pelo eminente Relator, Ministro MARCO AURÉLIO.
Não se pode ignorar - consoante proclama autorizado
magistério doutrinário (SYDNEY SANCHES, Poder Cautelar Geral do
Juiz no Processo Civil Brasileiro, p. 30, 1978, RT; JOSÉ FREDERICO
MARQUES, Manual de Direito Processual Civil, vol. 4/335,
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item n. 1021, 7ª ed., 1987, Saraiva; CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO,
A Instrumentalidade do Processo, p. 336/371, 1987, RT; VITTORIO
DENTI, Sul Concetto di funzione cautelare, in Studi
P. Ciapessoni, p. 23/24, 1948; PIERO CALAMANDREI, Introduzione
allo Studio Sistematico dei Provvedimenti cautelari, p. 20,
item n. 8, Pádua, 1936, Cedam; HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, Tutela
Cautelar, vol. 4, p. 17, 1992, Aide, v.g.) - que os provimentos de
natureza cautelar, como o de que ora se cuida, acham-se
instrumentalmente vocacionados a conferir efetividade ao julgamento
final resultante do processo principal, assegurando, desse modo,
plena eficácia à tutela jurisdicional de conhecimento ou de
execução.
É importante destacar, por oportuno, que a
acessoriedade e a instrumentalidade, nesse contexto, constituem
notas caracterizadoras do processo e da tutela cautelares.
Destinado a garantir complexivamente o resultado de outro
processo, assinala JOSÉ FREDERICO MARQUES (Manual de Direito
Processual Civil, vol. IV/361, item n. 1.048, 1976, Saraiva),
o processo cautelar se relaciona com este, como o acessório com o
principal. Daí o predomínio e hegemonia do processo principal, de
que o cautelar é sempre dependente (grifei).
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Existe, por isso mesmo, em casos como o que ora se
examina, uma situação de conexão por acessoriedade, que decorre do
vínculo existente entre a medida cautelar, de um lado, e a causa
principal, de outro. Nesse sentido, o magistério, sempre autorizado,
de JOSÉ FREDERICO MARQUES (Instituições de Direito Processual
Civil, vol. I/340, 3ª edição, e vol. III/256-257, 2ª edição,
Forense) e de GIUSEPPE CHIOVENDA (Instituições de Direito
Processual Civil, vol. II/298-299, tradução da 2ª edição italiana
por ENRICO TULLIO LIEBMAN, 1943, Saraiva).
Como assinalado, a relação de essencial dependência que
existe entre este procedimento e a causa principal (RE 389.808/PR)
justificava que se desse acolhimento ao pedido cautelar, por se
mostrar claramente viável o pleito deduzido no processo principal
(RE 389.808/PR), em face do vínculo de irrecusável acessoriedade que
subordina, ao destino do processo principal, a subsistência da
postulação formulada com base no art. 796 do CPC.
Assentada tal premissa, que confere particular ênfase
ao binômio utilidade/necessidade, torna-se essencial reconhecer -
notadamente em função do próprio modelo vigente em nosso ordenamento
processual - que a tutela cautelar apresenta-se como instrumento
compatível com os fins a que se acha vocacionado o processo,
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especialmente se se tiver presente o fato, juridicamente relevante, de
que o exercício do poder geral de cautela destina-se a garantir a
própria utilidade da prestação jurisdicional a ser efetivada no
processo principal, em ordem a impedir que eventual retardamento na
apreciação do litígio culmine por afetar e comprometer o resultado
definitivo do julgamento.
Inquestionável, desse modo, o acerto com que se houve o
eminente Relator na concessão da tutela cautelar que lhe foi
requerida.
Passo, agora, Senhor Presidente, a apreciar a decisão
ora submetida ao referendo desta Corte, reconhecendo, desde logo, a
densa plausibilidade jurídica subjacente à postulação cautelar
deduzida nesta sede processual.
A controvérsia instaurada na presente causa suscita
algumas reflexões em torno do tema pertinente ao alcance da norma
inscrita no art. 5º, X e XII, da Constituição, que, ao consagrar a
tutela jurídica da intimidade (e, também, da privacidade), dispõe
que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas (...) (grifei).
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Esse tema ganha ainda maior relevo, se se considerar o
círculo de proteção que o ordenamento constitucional estabeleceu em
torno das pessoas, notadamente dos contribuintes do Fisco,
objetivando protegê-los contra ações eventualmente arbitrárias
praticadas pelos órgãos estatais da administração tributária, o que
confere especial importância ao postulado da proteção judicial
efetiva, que torna inafastável, em situações como a dos autos, a
necessidade de autorização judicial, cabendo ao Juiz, e não à
administração tributária, a quebra do sigilo bancário.
..........................................................
Assiste plena razão a Vossa Excelência, pois os órgãos
estatais da administração tributária não guardam, em relação ao
contribuinte, posição de eqüidistância nem dispõem do atributo
(apenas inerente à jurisdição) da terzietà, o que põe em destaque
o sentido tutelar da cláusula inscrita no § 1º do art. 145 de nossa
Lei Fundamental.
Com efeito, a própria Constituição da República, em seu
art. 145, § 1º, ao dispor sobre o sistema tributário nacional,
prescreve, em caráter impositivo, que a administração tributária,
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quando no exercício de sua competência, respeite os direitos
individuais das pessoas em geral e dos contribuintes em particular.
O exame da questão ora em análise torna indispensável
que se aprecie, já nesta fase, o tema concernente ao poder do Estado
e às relações entre o Fisco, os contribuintes e os cidadãos em
geral.
Impende reconhecer, desde logo, que não são absolutos
mesmo porque não o são - os poderes de que se acham investidos os
órgãos e agentes da administração tributária, cabendo assinalar, por
relevante, Senhores Ministros, presente o contexto ora em exame, que
o Estado, em tema de tributação, está sujeito à observância de um
complexo de direitos e prerrogativas que assistem,
constitucionalmente, aos contribuintes e aos cidadãos em geral. Na
realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias
individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode
caracterizar ilícito constitucional.
Daí a necessidade de rememorar, sempre, a função
tutelar do Poder Judiciário, investido de competência institucional
para neutralizar eventuais abusos das entidades governamentais, que,
muitas vezes deslembradas da existência, em nosso sistema jurídico,
de um verdadeiro estatuto constitucional do contribuinte -
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consubstanciador de direitos e limitações oponíveis ao poder
impositivo do Estado (Pet 1.466/PB, Rel. Min. CELSO DE MELLO, in
Informativo/STF nº 125) - culminam por asfixiar, arbitrariamente, o
sujeito passivo da obrigação tributária, inviabilizando-lhe,
injustamente, trate-se de obrigação tributária principal, cuide-se de
obrigação tributária acessória ou instrumental, a prática de
garantias legais e constitucionais de que é legítimo titular,
fazendo instaurar, assim, situação que só faz conferir permanente
atualidade ao dictum do Justice Oliver Wendell Holmes, Jr. (The
power to tax is not the power to destroy while this Court sits), em
palavras segundo as quais, em livre tradução, o poder de tributar
não significa nem envolve o poder de destruir, pelo menos enquanto
existir esta Corte Suprema, proferidas, ainda que como dissenting
opinion, no julgamento, em 1928, do caso Panhandle Oil Co.
v. State of Mississippi Ex Rel. Knox (277 U.S. 218).
......................................................
Essa, na realidade, é a grande questão suscitada no
âmbito da causa principal, que exigirá a definição, por parte desta
Corte Suprema, da incidência, ou não, no caso, do postulado
constitucional da reserva de jurisdição.
.......................................................
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O que me parece significativo, nesse contexto, é que a
administração tributária, embora podendo muito, não pode tudo, eis
que lhe é somente lícito atuar, respeitados os direitos individuais
e nos termos da lei (CF, art. 145, § 1º), consideradas, sob tal
perspectiva, e para esse efeito, as limitações decorrentes do
próprio sistema constitucional, cuja eficácia restringe, como
natural conseqüência da supremacia de que se acham impregnadas as
garantias instituídas pela Lei Fundamental, o alcance do poder
estatal, especialmente quando exercido em face do contribuinte e dos
cidadãos da República.
Cumpre ter presente, neste ponto, Senhores Ministros, a
propósito do tema ora em exame, a advertência do Supremo Tribunal
Federal, cujo magistério jurisprudencial apoiando-se em autorizado
entendimento doutrinário (HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO, Processo
Tributário, p. 76/86, item n. 2.5.2, 2004, Atlas; SACHA CALMON
NAVARRO COÊLHO, Curso de Direito Tributário Brasileiro, p. 893/907,
itens ns. 17.12 a 17.20, 8ª ed., 2005, Forense; HUGO DE BRITO
MACHADO, Curso de Direito Tributário, p. 214/223, itens ns. 1 a
1.6, 21ª ed., 2002, Malheiros; ROQUE ANTONIO CARRAZZA, Curso de
Direito Constitucional Tributário, p. 404/411, item n. 3, 21ª ed.,
2005, Malheiros, v.g.) orienta-se no sentido de preservar o
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contribuinte contra medidas arbitrárias adotadas pelos agentes da
administração tributária, muitas das quais configuram atos
eivados de ilicitude, quando não de transgressão à ordem jurídica
fundada na própria Constituição da República (RTJ 162/3-6, 4, Rel.
Min. ILMAR GALVÃO RTJ 185/237-238, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE
RE 331.303-AgR/PR, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.).
Na realidade, a circunstância de a administração
estatal achar-se investida de poderes excepcionais que lhe permitem
exercer a fiscalização em sede tributária não a exonera do dever de
observar, para efeito do correto desempenho de tais prerrogativas,
os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República, sob
pena de os órgãos governamentais incidirem em frontal desrespeito às
garantias constitucionalmente asseguradas aos cidadãos em geral e
aos contribuintes, em particular.
O procedimento estatal da administração tributária que
contrarie os postulados consagrados pela Constituição da República
revela-se inaceitável, Senhores Ministros, e não pode ser
corroborado por decisão desta Suprema Corte, sob pena de
inadmissível subversão dos postulados constitucionais que definem,
de modo estrito, os limites inultrapassáveis que restringem os
poderes do Estado em suas relações com os contribuintes e com
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terceiros, tal como advertiu o Supremo Tribunal Federal em
julgamento consubstanciado em acórdão assim ementado:
ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA FISCALIZAÇÃO
PODERES NECESSÁRIO RESPEITO AOS DIREITOS E GARANTIAS
INDIVIDUAIS DOS CONTRIBUINTES E DE TERCEIROS.
- Não são absolutos os poderes de que se acham
investidos os órgãos e agentes da administração
tributária, pois o Estado, em tema de tributação,
inclusive em matéria de fiscalização tributária, está
sujeito à observância de um complexo de direitos e
prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos
contribuintes e aos cidadãos em geral. Na realidade, os
poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias
individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito
pode caracterizar ilícito constitucional.
- A administração tributária, por isso mesmo,
embora podendo muito, não pode tudo. É que, ao Estado,
é somente lícito atuar, respeitados os direitos
individuais e nos termos da lei (CF, art. 145, § 1º),
consideradas, sobretudo, e para esse específico efeito,
as limitações jurídicas decorrentes do próprio sistema
instituído pela Lei Fundamental, cuja eficácia
que prepondera sobre todos os órgãos e agentes
fazendários restringe-lhes o alcance do poder de que
se acham investidos, especialmente quando exercido em
face do contribuinte e dos cidadãos da República, que
são titulares de garantias impregnadas de estatura
constitucional e que, por tal razão, não podem ser
transgredidas por aqueles que exercem a autoridade em
nome do Estado. (...).
(HC 93.050/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Posta a questão nesses termos, mostra-se imperioso
assinalar, considerados os fatos subjacentes ao litígio principal,
que se revela inacolhível a pretensão da administração tributária
federal, que busca afastar, ex propria auctoritate,
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independentemente de prévia autorização judicial, o sigilo bancário
da empresa contribuinte, ora requerente.
Não se pode ignorar que o direito à intimidade (e,
também, à privacidade) - que representa importante manifestação dos
direitos da personalidade - qualifica-se como expressiva
prerrogativa de ordem jurídica que consiste em reconhecer, em favor
da pessoa, a existência de um espaço indevassável destinado a
protegê-la contra indevidas interferências de terceiros na esfera de
sua vida privada.
Daí a correta advertência feita por CARLOS ALBERTO DI
FRANCO, para quem Um dos grandes desafios da sociedade moderna é a
preservação do direito à intimidade. Nenhum homem pode ser
considerado verdadeiramente livre, se não dispuser de garantia de
inviolabilidade da esfera de privacidade que o cerca.
Por isso mesmo, a transposição arbitrária, para o
domínio público, de questões meramente pessoais, sem qualquer
reflexo no plano dos interesses sociais, tem o significado de grave
transgressão ao postulado constitucional que protege o direito à
intimidade e à privacidade (MS 23.669-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE
MELLO, v.g.), pois este, na abrangência de seu alcance, representa o
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direito de excluir, do conhecimento de terceiros, aquilo que diz
respeito ao modo de ser da vida privada (HANNAH ARENDT).
É certo que a garantia constitucional da intimidade (e
da privacidade) não tem caráter absoluto. Na realidade, como já
decidiu esta Suprema Corte, Não há, no sistema constitucional
brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter
absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou
exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades
legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos
órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas
individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos
estabelecidos pela própria Constituição (MS 23.452/RJ, Rel. Min.
CELSO DE MELLO). Isso não significa, contudo, que o estatuto
constitucional das liberdades públicas - nele compreendida a
garantia fundamental da intimidade - possa ser arbitrariamente
desrespeitado por qualquer órgão do Poder Público.
Nesse contexto, põe-se em evidência a questão
pertinente ao sigilo bancário, que, ao dar expressão concreta a uma
das dimensões em que se projeta, especificamente, a garantia
constitucional da privacidade, protege a esfera de intimidade
financeira das pessoas.
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Embora o sigilo bancário, também ele, não tenha caráter
absoluto (RTJ 148/366, Rel. Min. CARLOS VELLOSO RTJ 172/302-303,
Rel. Min. CARLOS VELLOSO - MS 23.452/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO,
v.g.), deixando de prevalecer, por isso mesmo, em casos
excepcionais, diante de exigências impostas pelo interesse público
(SERGIO CARLOS COVELLO, O Sigilo Bancário como Proteção à
Intimidade, in Revista dos Tribunais, vol. 648/27), não se pode
desconsiderar, no exame dessa questão, que o sigilo bancário reflete
uma expressiva projeção da garantia fundamental da intimidade - da
intimidade financeira das pessoas, em particular -, não se expondo,
em conseqüência, enquanto valor constitucional que é (VÂNIA
SICILIANO AIETA, A Garantia da Intimidade como Direito
Fundamental, p. 143/147, 1999, Lumen Juris), a intervenções
estatais ou a intrusões do Poder Público desvestidas de causa
provável ou destituídas de base jurídica idônea.
Tenho insistentemente salientado, em decisões várias
que já proferi nesta Suprema Corte, que a tutela jurídica da
intimidade (e, também, da privacidade) constitui - qualquer que seja
a dimensão em que se projete - uma das expressões mais
significativas em que se pluralizam os direitos da personalidade.
Trata-se de valor constitucionalmente assegurado (CF, art. 5º, X),
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cuja proteção normativa busca erigir e reservar, sempre em favor do
indivíduo - e contra a ação expansiva do arbítrio do Poder Público -
uma esfera de autonomia intangível e indevassável pela atividade
desenvolvida pelo aparelho de Estado.
O magistério doutrinário, bem por isso, tem acentuado
que o sigilo bancário - que possui extração constitucional -
reflete, na concreção do seu alcance, um direito fundamental da
personalidade, expondo-se, em conseqüência, à proteção jurídica a
ele dispensada pelo ordenamento positivo do Estado.
O eminente Professor ARNOLDO WALD, em precisa abordagem
do tema (Caderno de Direito Tributário e Finanças Públicas,
vol. 1/206, 1992, RT), expendeu lúcidas considerações a respeito
dessa questão, destacando a essencialidade da tutela constitucional
na proteção político-jurídica da intimidade pessoal e da liberdade
individual:
Se podia haver dúvidas no passado, quando as
Constituições brasileiras não se referiam
especificamente à proteção da intimidade, da vida
privada e do sigilo referente aos dados pessoais, é
evidente que, diante do texto constitucional de 1988,
tais dúvidas não mais existem quanto à proteção do
sigilo bancário como decorrência das normas da lei
magna.
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Efetivamente, as Constituições Brasileiras
anteriores à de 1988, não só não asseguravam o direito
à privacidade como também, quando tratavam do sigilo,
limitavam-se a garanti-lo em relação à correspondência
e às comunicações telegráficas e telefônicas, não se
referindo ao sigilo em relação aos papéis de que tratam
a Emenda nº IV à Constituição Americana, a Constituição
Argentina e leis fundamentais de outros países. Ora,
foi em virtude da referência aos papéis que tanto o
direito norte-americano quanto o argentino concluíram
que os documentos bancários tinham proteção
constitucional.
Com a revolução tecnológica, os papéis se
transformaram em dados geralmente armazenados em
computadores ou fluindo através de impulsos
eletrônicos, ensejando enormes conjuntos de informações
a respeito das pessoas, numa época em que todos
reconhecem que a informação é poder. A computadorização
da sociedade exigiu uma maior proteção à privacidade,
sob pena de colocar o indivíduo sob contínua
fiscalização do Governo, inclusive nos assuntos que são
do exclusivo interesse da pessoa. Em diversos países,
leis especiais de proteção contra o uso indevido de
dados foram promulgadas e, no Brasil, a inviolabilidade
dos dados individuais, qualquer que seja a sua origem,
forma e finalidade, passou a merecer a proteção
constitucional em virtude da referência expressa que a
eles passou a fazer o inciso XII do art. 5º,
modificando, assim, a posição anterior da nossa
legislação, na qual a indevassabilidade em relação a
tais informações devia ser construída com base nos
princípios gerais que asseguravam a liberdade
individual, podendo até ensejar interpretações
divergentes ou contraditórias.
Assim, agora em virtude dos textos expressos da
Constituição e especialmente da interpretação
sistemática dos incisos X e XII do art. 5º da CF, ficou
evidente que a proteção ao sigilo bancário adquiriu
nível constitucional, impondo-se ao legislador, o que,
no passado, podia ser menos evidente. (grifei)
O direito à inviolabilidade dessa franquia individual -
que constitui, insista-se, um dos núcleos básicos em que se
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desenvolve, em nosso País, o regime das liberdades públicas -
ostenta, como precedentemente enfatizado, caráter meramente
relativo. Não assume nem se reveste de natureza absoluta. Cede, por
isso mesmo, e sempre em caráter excepcional, às exigências impostas
pela preponderância axiológica e jurídico-social do interesse
público, tal como acentuado, em diversos julgamentos, por esta
Suprema Corte (AI 528.539/PR, Rel. Min. CEZAR PELUSO - AI 655.298-
-AgR/SP, Rel. Min. EROS GRAU, v.g.):
CONSTITUCIONAL. SIGILO BANCÁRIO: QUEBRA.
ADMINISTRADORA DE CARTÕES DE CRÉDITO. CF, art. 5º, X.
I. - Se é certo que o sigilo bancário, que é
espécie de direito à privacidade, que a Constituição
protege - art. 5º, X -, não é um direito absoluto, que
deve ceder diante do interesse público, do interesse
social e do interesse da Justiça, certo é, também, que
ele há de ceder na forma e com observância de
procedimento estabelecido em lei e com respeito ao
princípio da razoabilidade. (...).
(RE 219.780/PE, Rel. Min. CARLOS VELLOSO - grifei)
A pesquisa da verdade, nesse contexto, constitui um dos
princípios dominantes e fundamentais no processo de disclosure das
operações celebradas no âmbito das instituições financeiras. Essa
busca de elementos informativos - elementos estes que compõem o
quadro de dados probatórios essenciais para que o Estado desenvolva
regularmente suas atividades e realize os fins institucionais a que
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se acha vinculado -, sofre os necessários condicionamentos que a
ordem jurídica impõe à ação do Poder Público.
Tenho enfatizado, por isso mesmo, que a quebra do
sigilo bancário - ato que se reveste de extrema gravidade jurídica -
só deve ser decretada, e sempre em caráter de absoluta
excepcionalidade, quando existentes fundados elementos que
justifiquem, a partir de um critério essencialmente apoiado na
prevalência do interesse público, a necessidade da revelação dos
dados pertinentes às operações financeiras ativas e passivas
resultantes da atividade desenvolvida pelas instituições bancárias.
A relevância do direito ao sigilo bancário impõe, por
isso mesmo, cautela e prudência ao Poder Judiciário na determinação
da ruptura da esfera de privacidade individual que o ordenamento
jurídico, em norma de salvaguarda, pretendeu submeter à cláusula
tutelar de reserva constitucional (CF, art. 5º, X).
É preciso salientar, neste ponto, que a jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal proclamou a plena compatibilidade
jurídica da quebra do sigilo bancário com a norma inscrita no
art. 5º, incisos X e XII, da Constituição (Pet 577-QO/DF, Rel. Min.
CARLOS VELLOSO, DJU de 23/04/93), reconhecendo possível autorizar -
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quando presentes fundadas razões - a pretendida disclosure das
informações bancárias reservadas (RTJ 148/366).
Mais do que isso, esta Suprema Corte salientou, ao
julgar o Inq 897-AgR/DF, Rel. Min. FRANCISCO REZEK, DJU de 02/12/94,
que, não sendo absoluta a garantia pertinente ao sigilo bancário,
torna-se lícito afastar, quando de investigação criminal se cuidar,
p. ex., a cláusula de reserva que protege as contas bancárias nas
instituições financeiras, revelando-se ordinariamente inaplicável,
para esse específico efeito, a garantia constitucional do
contraditório.
Impõe-se observar, por necessário - e tal como adverte
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE (Os Direitos Fundamentais na
Constituição Portuguesa de 1976, p. 220/224, 1987, Livraria
Almedina, Coimbra) - que a ampliação da esfera de incidência das
franquias individuais e coletivas, de um lado, e a intensificação da
proteção jurídica dispensada às liberdades fundamentais, de outro,
tornaram inevitável a ocorrência de situações caracterizadoras de
colisão de direitos assegurados pelo ordenamento constitucional.
Com a evolução do sistema de tutela constitucional das
liberdades públicas, dilataram-se os espaços de conflito em cujo
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âmbito antagonizam-se, em função de situações concretas emergentes,
posições jurídicas revestidas de igual carga de positividade
normativa.
Vários podem ser, dentro desse contexto excepcional de
conflituosidade, os critérios hermenêuticos destinados à solução das
colisões de direitos, que vão desde o estabelecimento de uma ordem
hierárquica pertinente aos valores constitucionais tutelados,
passando pelo reconhecimento do maior ou menor grau de
fundamentalidade dos bens jurídicos em posição de antagonismo, até a
consagração de um processo que, privilegiando a unidade e a
supremacia da Constituição, viabilize - a partir da adoção de um
critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do
conflito (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, op. loc. cit.) - a
harmoniosa composição dos direitos em situação de colidência.
Sendo assim, impõe-se o deferimento da quebra de sigilo
bancário, sempre que essa medida se qualificar como providência
essencial e indispensável à satisfação das finalidades inderrogáveis da
investigação (e/ou da fiscalização) estatal, e desde que - consoante
adverte a doutrina - não exista nenhum meio menos gravoso para a
consecução de tais objetivos (IVES GANDRA MARTINS/GILMAR FERREIRA
MENDES, Sigilo Bancário, Direito de Autodeterminação sobre
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Informações e Princípio da Proporcionalidade, in Repertório IOB de
Jurisprudência nº 24/92 - 2ª quinzena de dezembro/92).
Contudo, para que essa providência extraordinária, e
sempre excepcional, que é a decretação da quebra do sigilo bancário,
seja autorizada, revela-se imprescindível a existência de causa
provável, vale dizer, de fundada suspeita quanto à ocorrência de
fato cuja apuração resulte exigida pelo interesse público.
Na realidade, sem causa provável, não se justifica, sob
pena de inadmissível consagração do arbítrio estatal e de
inaceitável opressão do indivíduo pelo Poder Público, a disclosure
das contas bancárias, eis que a decretação da quebra do sigilo não
pode converter-se num instrumento de indiscriminada e ordinária
devassa da vida financeira das pessoas em geral.
A quebra do sigilo bancário importa, necessariamente,
em inquestionável restrição à esfera jurídica das pessoas afetadas
por esse ato excepcional do Poder Público. A pretensão estatal
voltada à disclosure das operações financeiras constitui fator de
grave ruptura das delicadas relações - já estruturalmente tão
desiguais - existentes entre o Estado e o indivíduo, tornando
possível, até mesmo, quando indevidamente acolhida, o próprio
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comprometimento do sentido tutelar que inequivocamente qualifica, em
seus aspectos essenciais, o círculo de proteção estabelecido em
torno da prerrogativa pessoal fundada no direito constitucional à
privacidade.
Dentro dessa perspectiva, revela-se de inteira
pertinência a invocação doutrinária da cláusula do substantive due
process of law - já consagrada e reconhecida, em diversas decisões
proferidas por este Supremo Tribunal Federal, como instrumento de
expressiva limitação constitucional ao próprio poder do Estado
(ADI 1.063/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 1.158/AM, Rel. Min.
CELSO DE MELLO, v.g.) -, para efeito de submeter o processo de
disclosure às exigências de seriedade e de razoabilidade.
Daí o registro feito por ARNOLDO WALD (op. cit.,
p. 207, 1992, RT), no sentido de que A mais recente doutrina norte-
-americana fez do due process of law uma forma de controle
constitucional que examina a necessidade, razoabilidade e
justificação das restrições à liberdade individual, não admitindo
que a lei ordinária desrespeite a Constituição, considerando que as
restrições ou exceções estabelecidas pelo legislador ordinário devem
ter uma fundamentação razoável e aceitável conforme entendimento do
Poder Judiciário. Coube ao Juiz Rutledge, no caso Thomas v. Collins,
AC 33-MC / PR
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definir adequadamente a função do devido processo legal ao afirmar
que: Mais uma vez temos de enfrentar o dever, imposto a esta Corte,
pelo nosso sistema constitucional, de dizer onde termina a liberdade
individual e onde começa o poder do Estado. A escolha do limite,
sempre delicada, é-o, ainda mais, quando a presunção usual em favor
da lei é contrabalançada pela posição preferencial atribuída, em
nosso esquema constitucional, às grandes e indispensáveis liberdades
democráticas asseguradas pela Primeira Emenda (...). Esta prioridade
confere a essas liberdades santidade e sanção que não permitem
intromissões dúbias. E é o caráter do direito, não da limitação, que
determina o standard guiador da escolha. Por essas razões, qualquer
tentativa de restringir estas liberdades deve ser justificada por
evidente interesse público, ameaçado não por um perigo duvidoso e
remoto, mas por um perigo evidente e atual (grifei).
A exigência de preservação do sigilo bancário -
enquanto meio expressivo de proteção ao valor constitucional da
intimidade - impõe ao Estado o dever de respeitar a esfera jurídica
de cada pessoa. A ruptura desse círculo de imunidade só se
justificará desde que ordenada por órgão estatal investido, nos
termos de nosso estatuto constitucional, de competência jurídica
para suspender, excepcional e motivadamente, a eficácia do princípio
da reserva das informações bancárias.
AC 33-MC / PR
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Em tema de ruptura do sigilo bancário, somente os
órgãos do Poder Judiciário dispõem do poder de decretar essa medida
extraordinária, sob pena de a autoridade administrativa interferir,
indevidamente, na esfera de privacidade constitucionalmente
assegurada às pessoas. Apenas o Judiciário, ressalvada a competência
das Comissões Parlamentares de Inquérito (CF, art. 58, § 3º), pode
eximir as instituições financeiras do dever que lhes incumbe em tema
de sigilo bancário.
Daí a correta decisão emanada do E. Superior Tribunal
de Justiça, que, em julgamento sobre o tema ora em análise, assim
apreciou a questão pertinente à indispensabilidade de prévia
autorização judicial para efeito de quebra do sigilo bancário:
SIGILO BANCÁRIO - INSTITUIÇÕ
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