VALOR ECONÔMICO - BRASIL
Órgãos pedem novas leis contra corrupção
O governo da presidente eleita, Dilma Rousseff, começa com duas metas importantes na área do combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro. De acordo com documento aprovado por mais de 70 órgãos públicos, no fim de novembro, durante encontro da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), em Florianópolis, é urgente a aprovação de duas novas leis para ambos os crimes.
O foco nessas duas leis significou uma alteração significativa na Enccla. A estratégia trocou uma lista de dezenas de metas - distribuídas entre os órgãos de combate ao crime e de fiscalização financeira, como Polícia Federal, Receita Federal, Banco Central e Ministério Público - por apenas duas. Antes, as autoridades saíam da Enccla com objetivos concretos para cumprir, como agilizar a quebra do sigilo bancário de pessoas sob investigação ou regulamentar a atuação das companhias "off shore" (especializadas em fazer investimentos no exterior). Agora, elas querem apenas a aprovação de duas leis.
"Nós percebemos que não dá mais para continuar com as leis atuais", justificou ao Valoro secretário nacional de Justiça, Pedro Abramovay. "Decidimos apelar aos membros do Congresso Nacional para que aprovem dois projetos de lei que tramitam há algum tempo no Legislativo", completou.
O primeiro projeto modifica a atual Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro (nº 9.613), de 1998. Ele prevê o fim dos crimes antecedentes ao de lavagem. Isso é importante porque, pela lei atual, para que uma pessoa seja condenada por lavagem (com pena de reclusão de três a dez anos) é preciso que, antes, ela seja pega por tráfico de drogas, terrorismo, contrabando, extorsão mediante sequestro ou pelos crimes contra a administração pública, o sistema financeiro ou de organização criminosa. Já pelo texto do projeto de lei, a pessoa poderá ser condenada diretamente pelo crime de lavagem. Basta que oculte a origem ilícita do dinheiro para cumprir a pena de reclusão.
O segundo projeto de lei tipifica as organizações criminosas e regulamenta o uso de modernas técnicas de investigação. "Há a necessidade urgente de aprovação de uma nova lei do crime organizado", afirmou Ricardo Saadi, diretor do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional do Ministério da Justiça.
Segundo Saadi, já houve casos de policiais que entraram em quadrilhas, com o objetivo de investigá-las, mas tiveram que cometer pequenos crimes para não serem descobertos. Ao fim, acabaram sendo processados por delitos, como venda de drogas. "A infiltração é um instituto muito moderno, mas ainda não tem regulamentação no Brasil."
A delação premiada também padece de falta de regulamentação. Sem lei específica, os juízes, em algumas ocasiões, simplesmente não referendam acordos pelos quais criminosos entregam provas da quadrilha da qual participavam. Recentemente, uma pessoa aderiu à delação junto ao Ministério Público para entregar provas de uma organização criminosa às autoridades. Mas um juiz permitiu o acesso dos termos da delação aos advogados dos criminosos e, com isso, acabou comprometendo o uso das informações obtidas com o acordo feito pelo MP. "Esse é um exemplo que está nos dando muita dor de cabeça", comentou Saadi. "É urgente a regulamentação da delação para o nosso ordenamento jurídico."
"O Congresso deve criar um arcabouço legislativo adequado para a utilização desses meios de obtenção de provas", disse Abramovay. Para ele, as leis atuais são precárias para lidar com os meios modernos de obtenção de provas. As escutas telefônicas, por exemplo, têm uma regulamentação de 1996. "Hoje, elas são feitas de modo totalmente diferente, muito mais ágil."
Neste ano, o governo e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) trabalharam para que a autorização de escutas não passasse mais pelas companhias telefônicas. O objetivo era o de evitar que funcionários dessas companhias fossem cooptados por organizações criminosas e avisassem previamente sobre a realização de escutas.
Outro ponto fundamental, explicou Abramovay, é a necessidade de maior cooperação jurídica internacional contra o crime organizado, o que facilitaria o bloqueio de contas utilizadas para "lavar" dinheiro no exterior. Hoje, essa cooperação está baseada numa resolução do Superior Tribunal de Justiça (STJ). "É urgente que a gente consiga ter uma regulamentação legal, sob pena de essa fragilidade atrapalhar todo um novo ramo, uma nova forma de investigar, de se constituir redes entre países", disse Abramovay. "Aquilo que, antigamente, era quase impensável, como conseguir extratos bancários e provas concretas em países estrangeiros, hoje é perfeitamente possível. "Seria ainda melhor se tivéssemos uma nova legislação sobre o assunto."
Tribunais resistem a novos métodos
As autoridades do governo que atuam no combate ao crime organizado consideram essencial a aproximação junto aos tribunais superiores de Brasília. Motivo: elas concluíram que os novos meios de obtenção de provas ainda não são bem compreendidos pelos ministros do tribunais que têm o poder de anular processos inteiros numa única decisão.
Esse temor foi manifestado por procuradores da República e delegados da Polícia Federal num seminário com ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF). No encontro, realizado na sede do STF, eles admitiram o receio que os ministros desses tribunais não compreendam o uso da tecnologia, em métodos como escutas telefônicas e rastreamento de contas bancárias. Para eles, uma decisão que determine a transcrição de mais de 10 mil páginas de gravações telefônicas ou de extratos bancários, para dar amplo direito de acesso a informação e de defesa aos acusados, pode simplesmente anular toda uma investigação.
"Percebe-se uma tendência nas decisões superiores de considerar que determinados direitos fundamentais estariam sendo violados, quando as provas são obtidas através de tecnologias inovadoras, como a interceptação telefônica e ambiental", afirmou o ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto. Para ele, essas inovações tecnológicas devem ser compreendidas pelos juízes dentro de um respeito às garantias de defesa dos acusados.
"O tema é, sem dúvida alguma, um dos grandes desafios, senão o maior, do processo criminal moderno", disse o procurador-geral da República, Roberto Gurgel. "A tecnologia hoje à disposição do crime tem tornado obsoletas técnicas que proclamávamos avançadas há pouco tempo", completou Gurgel, citando, como exemplo, as escutas ambientais.
O presidente do STF, ministro Cezar Peluso, reconheceu que a incorporação dessas tecnologias pelo Judiciário é um desafio, mas se disse otimista, pois a Justiça está passando por um amplo processo de informatização. "O Judiciário caminha para a disseminação do processo eletrônico em todas as esferas, o que permite a incorporação, ao processo criminal, de diversos formatos de provas que seriam impraticáveis nos velhos autos de papel", disse Peluso.
Já Gilson Dipp, ministro do STJ, apontou que os integrantes dos tribunais superiores "não têm vocação para conduzir ações penais". Segundo ele, o foro privilegiado - pelo qual senadores e deputados federais só podem ser processados no STF e governadores perante o STJ - causa um imenso desconforto. De um lado, Dipp identificou que há ministros do STF que nunca fizeram um interrogatório na vida. "Esses tribunais não têm vocação para ações penais originárias."
De outro, continuou ele, existem procuradores da República que temem pedir a produção de provas a ministros de tribunais superiores. "Eles têm medo que o ministro indefira ou não entenda", disse Dipp.
"Nós podemos avançar e amadurecer em alguns parâmetros", reconheceu a ministra do STF Cármen Lúcia Antunes Rocha. Segundo ela, há algumas falhas nas investigações, como a exposição de presos, durante operações da PF, e a falta de motivação em pedidos de produção de provas feitos pelo MP aos juízes. "O ser humano não deve ser carimbado como um troféu. A falta de motivação tem levado ao desperdício de provas."
Para o secretário nacional de Justiça, Pedro Abramovay, enquanto novas leis de combate ao crime não forem aprovadas pelo Congresso, as autoridades de investigação terão de contar com a compreensão de juízes e ministros de tribunais superiores.
"Nós não podemos imaginar que, para se produzir uma prova, seja necessária uma grande quantidade de informações, como milhares de extratos bancários, pois os juízes não vão conseguir absorver todo esse material", disse Abramovay.
"É humanamente impossível uma pessoa analisar 100 mil extratos bancários. O que existe hoje são maneiras de gerir a informação. São formas confiáveis de se conseguir extrair conhecimento de uma grande quantidade de dados."
Um exemplo foi dado por Marcelo Stopanovski, que, após trabalhar no Ministério da Justiça, abriu uma empresa de tecnologia no suporte a litígios. Ele contou que, em dez dias, fez a defesa de um acusado sobre 45 mil páginas de processos. Isso é possível através de programas de gestão de informação.
"Hoje, também é necessário fazer jurisprudência estatística para verificar como os tribunais costumam se posicionar sobre determinados temas", disse Stopanovski. "Através da tecnologia, nós conseguimos identificar padrões jurídicos. Assim como fazem os escritórios de advocacia, o promotor e o procurador vão ter de atuar com gestores de informação."
Legislação dificulta o desbloqueio de bens nos EUA
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, sancionou lei que dificultará o desbloqueio de bens pelo grupo Opportunity, de Daniel Dantas. A "Lei Dantas" como foi chamada naquele país, ou "Dantas Fix", foi aprovada em tempo recorde, neste mês, pelo Congresso dos EUA, depois que autoridades brasileiras no combate à lavagem de dinheiro e aos crimes financeiros alertaram para a possibilidade de o Opportunity obter de volta US$ 450 milhões, bloqueados após a Operação Satiagraha.
O objetivo da lei foi evitar desbloqueios, como os determinados pela Corte de Apelação do Distrito de Columbia, que beneficiaram o Opportunity. Em janeiro de 2009, as autoridades brasileiras conseguiram obter o bloqueio de duas contas, nos EUA, do fundo de investimento do Opportunity: a Tiger Eye e o Opportunity Fund. A alegação foi de que essas contas seriam usadas para a remessa de recursos ilegais, através de doleiros, o que seria crime financeiro.
Mas, em meados deste ano, a Corte de Columbia decidiu que as contas não podem ser bloqueadas antes de uma sentença definitiva pela Justiça do Brasil. Como aqui o processo da Satiagraha está na 1ª instância, essa sentença não existe. Dantas e o Opportunity só não conseguiram obter de volta os valores porque, logo após a decisão da Corte de Columbia, a Justiça brasileira determinou multa diária de R$ 1 milhão, caso os saques fossem realizados.
Com a sanção da "Lei Dantas", a hipótese de saque se tornou mais remota, pois a lei dificulta o desbloqueio de bens sob investigação por decisão interlocutória da Justiça, como a da Corte de Columbia. "Essa lei ajuda a manter a força da lei um passo à frente dos criminosos estrangeiros", disse o senador republicano John Cornyn.
A lei foi apresentada, em 2 de dezembro. No dia 14, o texto já havia sido aprovado pelo Senado. No dia 16, foi a vez da Câmara dar seu aval. No Brasil, o projeto da nova lei de lavagem de dinheiro tramita desde 2008 no Congresso. Um dos objetivos do texto é facilitar o uso de provas de crimes financeiros obtidas no exterior.
Para o secretário nacional de Justiça, Pedro Abramovay, a aprovação da nova lei pelo Congresso americano "reforça os laços de combate ao crime entre os países". "O recado para o Brasil é que é bastante arriscado mandar dinheiro ilegalmente para o exterior", afirmou Abramovay. "Falamos com os promotores americanos e articulamos com a ONU para conseguir a aprovação dessa lei", completou.
Procurado pelo Valor, o Opportunity negou as acusações de crimes financeiros e de lavagem de dinheiro e alegou que as duas operações da Polícia Federal das quais foi foi alvo foram marcadas por "ilegalidades, acusações falsas, provas forjadas, abuso de poder, uso ostensivo da imprensa, vazamento de informações e emprego da força policial em favor de interesses privados".
"Por conta das ilegalidades, as autoridades ligadas à Satiagraha foram afastadas de seu cargo e, em alguns casos, condenadas pela Justiça", ressaltou o Opportunity.
O banco negou ainda a acusação de evasão de divisas. Informou que "não envia recursos de seus investidores para o exterior", mas atua como gestor de fundos nacionais e estrangeiros. Segundo o banco, as aplicações feitas por clientes no Brasil em fundos nacionais não são enviadas ou remetidas para o exterior. "Os recursos são investidos em títulos e valores mobiliários negociados exclusivamente na Bovespa."
Juliano Basile - De Brasília e Florianópolis
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