Sobrestamento flexível
Norma que facilita julgamentos no Carf gera preocupação
Por Pedro Canário
Editada em janeiro, a Portaria 1/2012 do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Fazenda vem provocando discussões. A norma flexibilizou o sobrestamento de processos fiscais que tratem de matérias admitidas como de repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, mas ainda não julgadas pela corte. O regimento interno do órgão proíbe que processos sejam decididos antes que o Judiciário dê a palavra final, mas isso tem abarrotado os escaninhos do Conselho. Especialistas reconhecem a boa intenção da portaria, mas questionam se ela não foi além de definir a aplicação prática do procedimento, e acabou criando uma regra nova.
A portaria regulamentou o que dizem os parágrafos 1º e 2º do artigo 62-A do Regimento Interno do Carf. Os dispositivos dizem que ficarão sobrestados os julgamentos dos recursos sempre que o STF também sobrestar o julgamento dos recursos extraordinários da mesma matéria, até que seja proferida decisão nos termos do art. 543-B [do CPC], e explicam que o sobrestamento no Carf pode ser feito de ofício, pelo relator do caso ou por provocação das partes.
No entanto, a portaria determinou que os sobrestamentos só poderiam ser feitos caso as partes ou o relator do caso no Carf comprovassem a admissão de recurso extraordinário sobre a mesma matéria no STF, bem como o sobrestamento dos demais processos judiciais sobre o assunto nas instâncias inferiores. A regra passou a valer não só para os casos futuros, mas também para os que já estavam sobrestados.
A única unanimidade que envolve a portaria é que ela veio para salvar o órgão de um engessamento causado pela demora do STF em julgar matérias tributárias. Advogados que militam no Carf, conselheiros do órgão e especialistas ouvidos pela ConJur fazem coro quando elencam os motivos para a edição da portaria, principalmente em relação à celeridade que pretende garantir. Mas o consenso acaba aí.
Um exemplo é a opinião de Ives Gandra da Silva Martins, especialista em Direito Tributário. Para ele, a norma foi um esforço inútil" da Fazenda. Se o juiz é obrigado a sobrestar, com muito mais razão deve fazê-lo o órgão administrativo, afirma. O assunto será discutido em simpósio de Direito Tributário organizado anualmente por ele há mais de 30 anos e que este ano tratará de questões polêmicas do Carf. Segundo Martins, um levantamento feito com especialistas no tema entre eles, conselheiros do Carf já mostrou que pouco menos de um terço foi contra o sobrestamento, diz.
O tributarista, que também é professor emérito das Universidades Mackenzie e UniFMU, explica que, caso o Carf tome a portaria ao pé da letra e se adiante em julgar alguma matéria que espera julgamento no STF, e os ministros do Supremo depois decidirem de forma diferente, a Fazenda vai acabar gerando demanda para o Judiciário exatamente o que a repercussão geral e o regimento interno do Carf pretendiam evitar.
Solução urgente
Estima-se que, até dezembro do ano passado, antes da edição da portaria, cerca de 70% dos processos estavam parados aguardando posicionamento do Supremo. Com a edição da portaria, no entanto, a expectativa é que todos esses recursos sejam pautados nos próximos meses.
Entre os casos parados que passaram a poder ser julgados está o da transferência de dados bancários à Receita Federal sem a intermediação do Judiciário. O caso aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal, em uma ação que discute a constitucionalidade da Lei Complementar 105/2001. Em março, o Carf se adiantou e decidiu que a Receita não pode acessar dados bancários de contribuintes sem autorização da Justiça.
Outros casos também aguardam posicionamento do Supremo. O mais recente e um dos que mais trazem recursos ao Conselho é o da cobrança de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido de empresas estrangeiras coligadas ou controladas por companhias brasileiras.
Segundo a tributarista Mary Elbe Queiroz, a interpretação do sobrestamento no Carf estava muito alargada, muito abrangente, e não se estava julgando quase nada. A interpretação correta, segundo ela, é que somente devem ser sobrestados casos exatamente iguais aos admitidos pelo Supremo. Um processo pode ter vários temas. O Conselho deve ter a liberdade de analisar caso a caso.
Opiniões divididas
Ainda recente, a norma causa receio. Alguns conselheiros a maioria representantes do Fisco chegam a evitar comentar sobre o tema, argumentando haver orientação da Presidência de que só os membros da Câmara Superior, composta pelos presidentes das câmaras de julgamento, podem se pronunciar sobre o caso.
O advogado tributarista Rodrigo Leporace Farret, do escritório Bichara, Barata & Costa Advogados, afirma que a portaria tem dois lados de uma mesma moeda. Um deles é a celeridade processual de recursos administrativos de matérias tributárias. O outro é o Carf se adiantar e correr o risco de ver suas decisões virarem motivo de ações judiciais. É compreensível que o próprio órgão tenha encontrado uma medida alternativa para resolver o problema do engessamento, que foi a portaria. Mas ainda é muito cedo para dizer se é uma medida boa ou ruim, diz.
O conselheiro e advogado Moises Giacomelli defende a portaria. Afirma que o Conselho deve julgar com base no que acha correto, e o contribuinte, se discorda, deve ir ao Judiciário. O que não se pode mais admitir, segundo ele, é o órgão continuar "travado" porque o Supremo demora para julgar. Sabidamente, o Conselho tem servido como contraponto e análise crítica do que vem sendo decidido pela Justiça, afirma.
Conselheiro e auditor fiscal, Luiz Eduardo Santos é outro defensor da portaria. Falando em nome do presidente do Carf, Otacílio Cartaxo, autor da portaria, ele afirma que o texto regulamentou um procedimento, e interpretou o que diz o artigo 62-A do Regimento Interno. A decisão de editar a norma, conta o auditor, foi precedida de estudo da legislação sobre o sobrestamento nos casos de repercussão geral.
O estudo conclui, ele diz, que o Regimento Interno do STF determina que a repercussão geral é um instituto diferente do sobrestamento. O primeiro é tratado pelo artigo 322, cujo parágrafo único diz: Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões que, relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, ultrapassem os interesses subjetivos das partes. Dessa forma, a repercussão geral seria um critério de admissibilidade e não está diretamente relacionada ao sobrestamento, este tratado no artigo 328, que diz: Protocolado ou distribuído recurso cuja questão for suscetível de reproduzir-se em múltiplos feitos, a Presidência do Tribunal ou o(a) Relator(a), de ofício ou a requerimento da parte interessada, comunicará o fato aos tribunais ou turmas de Juizado Especial, a fim de que observem o disposto no art. 543-B do Código de Processo Civil, podendo pedir-lhes informações, que deverão ser prestadas em cinco dias, e sobrestar todas as demais causas com questão idêntica.
Segundo Santos, o regimento interno dá ao STF a possibilidade de sobrestar, mas não afirma que todo caso que está sob repercussão geral deve ser sobrestado. Com base nisso, e no que diz o Regimento Interno do Carf, Cartaxo elaborou a portaria. O entendimento não é consensual. Segundo o próprio conselheiro, alguns membros do Carf defendem o sobrestamento de todo caso analisado pelo Supremo. Já outros acreditam que só os que tiverem sido explicitamente declarados sobrestados é que devem aguardar o posicionamento dos ministros.
Ato secreto
O tributarista Flávio Eduardo Silva de Carvalho, do escritório Souza, Schneider, Pugliese e Sztokfisz Advogados, acredita que a portaria traz um assunto ainda mais delicado, que é a competência do presidente do Carf para editar uma medida com esse conteúdo. A portaria vai além da competência que o presidente do Conselho tem, segundo o Regimento Interno. A mudança só poderia ter sido feita pelo próprio ministro da Fazenda, diz.
Ele lembra ainda que a portaria sequer foi publicada no Diário Oficial da União, como normalmente o são os atos normativos do Carf. Para encontrá-la, deve-se ir à seção de Avisos e Notícias do site do órgão e procurar, entre as pautas de julgamento e os informes de casos retirados de pauta, sua publicação, no dia 6 de janeiro. A portaria foi veiculada como Boletim de Pessoal, como se fosse uma norma administrativa referente apenas aos funcionários do órgão. Alguns conselheiros, por isso, a têm como mera orientação, e não como regra. Também por isso, entre os conselheiros e advogados militantes no Carf há quem diga que a norma foi deliberadamente escondida para evitar polêmicas.
Luiz Eduardo Santos nega a tentativa de abafamento. Ele afirma que a norma não foi publicada no Diário Oficial porque não vincula terceiros, só o pessoal interno.
Confrontado sobre a dificuldade em encontrar a íntegra do texto no site do Conselho, Santos disse desconhecer o caso. Não tinha noção do problema. Isso deveria estar na seção de Legislação do site. Se não está, é por uma questão operacional. O auditor da Receita afirmou que irá contatar o setor de informática para facilitar a acessibilidade da norma.
Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 13 de abril de 2012
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