O julgamento do mensalão
Defesa da democracia e manipulação do Judiciário
Por Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho
Diante da despudorada desfaçatez do golpe verdadeiro tapa na cara desferido pelos senhores do mais recente imbróglio desta pobre República, como reagirá o cidadão comum? Ainda que parcialmente postas em dúvida por seus protagonistas, as versões sobre o episódio ofendem o sentimento de respeito à democracia, república e separação de poderes, postas em xeque por avantajadas doses de audácia, prepotência e cinismo.
Troquemos as versões em miúdos, de preferência raciocinando, até onde seja possível, sobre os pontos em que coincidem. O ex-deputado federal Nelson Jobim, também ex-ministro da Justiça e do Supremo, agora, depois de defenestrado pela presidente Dilma de seu ministério, advogado e militante do PMDB, recebeu em seu escritório brasiliense no final de abril o ex-presidente Lula e o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. Lá, conversaram sobre o processo do mensalão e a conveniência do adiamento de seu julgamento para após as eleições de outubro, que teria sido insinuada pelo ex-presidente da República, ao que o ministro Gilmar teria afirmado aqui começou a divergência de opiniões e também de versões que o tribunal não deveria considerar qualquer ideia de adiamento, muito ao contrário realizando logo que possível o julgamento, ao que se noticia, em agosto.
Segundo as versões em choque, Lula teria indagado a Gilmar sobre uma viagem deste a Berlim, ao que o ministro respondeu que para lá vai com alguma frequência em razão de ter uma filha ali residindo. Na verdade, o ex-presidente estaria se referindo a uma viagem específica, realizada na companhia do senador Demóstenes Torres acusado em processo por quebra de decoro em razão de suas apontadas estreitas ligações com o contraventor e empresário Carlinhos Cachoeira, personagem de rumorosa CPI mista no Congresso Nacional. Daí a oferecer, na versão do ministro Gilmar, blindagem na CPMI cujos cordéis controlaria, não seria preciso mais do que um pequeno passo, prontamente repelido, ainda conforme o relato deste último, que, ao recusar a desnecessária proteção, teria sugerido ao ex-presidente que fosse fundo em suas articulações políticas no âmbito da CPMI.
Já Nelson Jobim confirma a versão de Lula, embora, assim como este último, não converse muito com a imprensa sobre o assunto, preferindo lacônicas e quase monossilábicas negativas. O ex-presidente nega qualquer insinuação ou pressão sobre Gilmar ou o STF, afirmando-se, por meio de sua assessoria de imprensa, indignado (supõe-se que com a versão apresentada pelo ministro). Ao que parece, embora só o próprio pudesse afirmar com precisão, tão indignado hoje como, na eclosão do escândalo do mensalão, se disse traído.
O burlesco enredo também teria contado com referências à tentativa de envolvimento de outros ministros do STF na manobra protelatória do julgamento, que a esta altura, diante da firme reação do tribunal por seu presidente Ayres Britto e diversos de seus integrantes, bem como da enorme repercussão na mídia e na opinião pública sempre no repúdio da grotesca iniciativa , acabou se esvaindo.
Assim, a farsa não terá logrado êxito, embora a audaciosa tentativa já possa ser considerada um atentado à democracia, à república e à separação de poderes. O ministro Celso de Mello, decano do STF, chegou a afirmar que, se devidamente apurados os fatos fosse confirmada a manobra e estivesse o ex-presidente Lula no exercício do mandato, a extrema gravidade da situação justificaria a abertura de um processo de impeachment. Até porque soa muito estranho que Lula hoje fora da presidência, mas conservando um enorme capital de poder político e partidário passe melancolicamente a agredir valores que já lhe coube proteger por dever de ofício.
Se a responsabilidade de homem público, calcada em bela trajetória política de lutas democráticas e no exercício da presidência, não basta para imunizar sua carismática personalidade contra os riscos do abuso de poder, que, para preservar a outra face, os mecanismos institucionais de defesa da democracia e da república possam brecar a execução dessa ópera bufa em limites que permitam à cidadania exercer resistência às manipulações e repulsa a essa perigosa afronta.
Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho é desembargador e presidente da Comissão Mista de Comunicação Institucional do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 14 de junho de 2012
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