28/10 - Trezentos mil brasileiros estão com telefone grampeado
Cerca de 300 mil brasileiros estão com o telefone grampeado. A estimativa é de Neri Kluwe, presidente da Associação de Servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Asbin). Segundo ele, apenas 15 mil escutas funcionam dentro dos limites da lei. O resto é clandestino.
Reportagem da revista Época, assinada pelas jornalistas Tina Vieira e Solange Azevedo, mostra que a prática de vigiar conversas telefônicas no Brasil se tornou tão corriqueira que transparece em boa parte das notícias sobre investigações policiais. A mais recente foi na semana passada, quando nove policiais foram presos no interior de São Paulo acusados de usar grampos para achacar traficantes. Segundo a Corregedoria da Polícia Civil de Campinas, São Paulo, o delegado Pedro Luiz Pórrio conseguiu na Justiça autorização para interceptar o telefone de um suspeito. As gravações, que incriminariam o suposto traficante, não foram usadas para prendê-lo, mas sim para extorquir R$ 35 mil.
Na terça-feira 23 de outubro, a Câmara dos Deputados criou uma comissão para investigar denúncias sobre grampos telefônicos ilegais por parte de órgãos policiais. O deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), que deverá presidir a CPI, diz que a comissão vai mapear o uso de grampos em todo o país e propor medidas de controle.
Assim como a Câmara, o governo está se mexendo. Em novembro, uma comissão com representantes do Ministério da Justiça, Polícia Federal e Ministério Público conclui a redação de um projeto de lei com novas regras para a interceptação telefônica.
Segundo a reportagem da revista Época, no Brasil o grampo alimenta uma rede de chantagem, intimidação e constrangimento da qual é difícil escapar. As escutas têm servido para vários tipos de espionagem política, comercial, industrial e criminal. O abuso é grande, afirma o desembargador Tourinho Neto, do Tribunal Regional Federal, em Brasília. No fim de junho, ele julgou o Mandado de Segurança pedido por uma companhia telefônica que se recusava a executar escutas a pedido da Polícia Federal. Os agentes da PF queriam instalar grampos telefônicos em várias linhas, sem especificar os números que deveriam ser interceptados.
A decisão que impediu o grampo afirma: Na própria polícia, o subordinado escuta as conversas dos seus chefes, dos delegados, tomando conhecimento das pomposas operações, dos jornalistas, dos políticos, do amigo e do inimigo. A decisão recebeu o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil. Para a polícia, é mais fácil ficar ouvindo conversas alheias do que investigar, afirma Cezar Britto, presidente nacional da OAB.
A proliferação de escutas levanta uma questão: existe direito à privacidade no Brasil? Para Rodrigo Collaço, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, a intimidade não está ameaçada. Algumas instituições reclamam do uso de grampos porque agora pessoas de expressão estão sendo investigadas, afirma. Neri Kluwe, presidente da Asbin, diz o contrário. O descontrole no uso desses métodos de Inteligência no Brasil faz com que ninguém esteja livre do grampo.
Driblar as escutas faz parte do dia-a-dia de criminosos, terroristas e até empresários desconfiados da concorrência. A paranóia alimenta a indústria da contra-espionagem, que lucra vendendo vacinas contra o grampo. Uma delas é a criptografia das conversas telefônicas. A SecurStar, uma das empresas que oferecem esse tipo de blindagem no Brasil, afirma que seu público-alvo não são criminosos. Mesmo assim, Wilfried Hafner, presidente da empresa, diz que a tecnologia pode servir tanto a honestos quanto a bandidos. Infelizmente, não podemos impedir o uso indevido. Entre seus clientes, há políticos, bancos, escritórios de advocacia e até órgãos de investigação do governo. No meio das escutas e dos despistes, como fica a intimidade do cidadão comum?
Lá fora
A invasão da privacidade tem sido discutida em vários países. Os Estados Unidos adotaram medidas radicais para monitorar suspeitos de terrorismo. Depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, a Agência de Segurança Nacional (NSA, em inglês) desenvolveu um sistema de espionagem para ter acesso a todo tipo de dados transmitidos pelas empresas de telecomunicação, inclusive por internet. As escutas funcionaram sem autorização judicial entre 2002 e 2006. Uma ação coletiva, da qual um dos autores foi o jornalista Christopher Hitchens, colunista de Época, conseguiu derrubar na Justiça o big brother de George W. Bush. Uma juíza federal ordenou a suspensão do programa. A Casa Branca recorreu da decisão e o programa de vigilância foi mantido por outra decisão, de julho deste ano.
Na Alemanha, a lei Grosser Lauschangriff (ou grande ataque de espião) permite que órgãos de investigação monitorem locais e grampeiem telefones e ainda proíbe a criptografia de voz que serviria de proteção antigrampo, por entender que ela pode obstruir a Justiça. Na Inglaterra, a preocupação com a privacidade vai além das escutas. Hoje, em Londres, um pedestre pode ser observado por 300 câmeras de circuito fechado num único dia. O sistema foi adotado para coibir a violência, sobretudo no centro da cidade. Pelos números da polícia, a vigilância não surtiu efeito o crime vem aumentando na cidade.
No Brasil, a Lei no 9.296, de 1996, afirma que a polícia e o Ministério Público só podem recorrer a interceptações telefônicas quando houver indícios razoáveis de envolvimento em crime punível com prisão e se a prova não puder ser obtida de outra forma. Na prática, esses pré-requisitos não são respeitados. No fim de junho, promotores do Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial (Gecep) entregaram ao procurador-geral de Justiça de São Paulo, Rodrigo Pinho, um relatório sobre irregularidades na realização de escutas telefônicas. A maioria dos pedidos feitos pela polícia e autorizados pela Justiça é apresentada sem os dados do titular da linha. Há apenas o prenome ou o apelido dos investigados, diz o promotor Fábio José Bueno, ex-integrante do Gecep.
Exemplos
Há três anos, o engenheiro Hugo Sterman Filho passou 11 dias na cadeia. Empresário do ramo imobiliário, ele foi preso por engano durante a Operação Anaconda, em que a Polícia Federal apurava um esquema de vendas de sentenças judiciais. O empresário foi libertado depois de o advogado dele, o criminalista Alberto Zacharias Toron, ter demonstrado à Justiça que, em determinado momento, sem explicação aparente, relatórios do serviço de inteligência da PF passaram a atribuir atos de Hugo Carlette, um dos suspeitos, a Hugo Sterman.
Toron recorreu a uma perícia de voz para mostrar que, nos grampos feitos pela PF, não era seu cliente quem conversava com o ex-agente federal César Herman, um dos principais envolvidos no esquema criminoso. A confusão teria ocorrido porque um celular adquirido pela empresa de Sterman foi desviado e usado, sem o conhecimento dele, por alguém que tinha contato com Herman. Nas gravações, Herman e o seu interlocutor, que a polícia tomou por Sterman, conversavam sobre as estratégias para obter liberdade provisória para um comparsa. Em abril deste ano, Sterman ganhou uma ação de indenização por danos morais movida contra a União. A Justiça Federal de São Paulo determinou o pagamento de R$ 500 mil ao empresário. Ainda cabe recurso.
Quando se é grampeado, a vida deixa de ter segredos. Tudo o que é dito cai nos ouvidos dos agentes: problemas familiares, intimidades de um casal, traições, tudo. Pela Lei de Interceptação Telefônica, todo esse material deveria ser descartado. Nem sempre isso acontece. Nas escutas feitas durante a Operação Anaconda, a Polícia Federal descobriu que o ex-agente da PF César Herman ligou para o advogado e ex-deputado federal José Roberto Batochio. Os contatos foram feitos durante a campanha eleitoral de 2002, quando Batochio coordenava a campanha de Ciro Gomes à Presidência da República.
Nas escutas, Herman diz querer contribuir com a campanha de Ciro e oferece a Batochio um dossiê sobre irregularidades no Funcef, o fundo de pensão da Caixa Econômica Federal. O material poderia ser usado contra o PSDB e enfraquecer a candidatura do tucano José Serra. Herman disse que tinha um dossiê e queria entregá-lo para o Ciro. E eu dei o endereço do comitê. Como deputado, se eu recebesse alguma denúncia, a levaria direto para a Câmara. As conversas vazaram para a mídia. Trechos descontextualizados foram divulgados pela imprensa e houve insinuações de que eu tinha relações com os envolvidos na Operação Anaconda. Chegaram até a bisbilhotar minhas declarações de Imposto de Renda, afirma Batochio.
Segundo ele, seus adversários no PDT aproveitaram o episódio para lhe tomar a presidência do partido em São Paulo. Em um relatório da Polícia Federal, Batochio, que já foi presidente nacional da OAB, chegou a ser incluído na categoria dos auxiliares da quadrilha que comandava o esquema de venda de sentenças judiciais. Mas, em uma nota divulgada à imprensa em novembro de 2003, o então diretor-geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda, admitiu que a inclusão do nome de Batochio como suspeito de envolvimento na Operação Anaconda foi um equívoco.
Problema da lei
A falta de indícios razoáveis nos pedidos de escuta telefônica fere a lei, mas é entendida pela Secretaria da Segurança Pública de São Paulo como parte da dinâmica das investigações. É comum termos conhecimento sobre determinados números de telefones usados por criminosos, mas não sabermos quem são os donos das linhas, diz Romeu Tuma Júnior, ex-delegado do Departamento de Inteligência da Polícia Civil e atual secretário nacional de Justiça. Os criminosos costumam usar celulares clonados ou em nome de terceiros. Em um caso de seqüestro, se os investigadores descobrirem o número dos bandidos, pedirão a quebra do sigilo mesmo sem ter idéia de quem está do outro lado da linha.
Para grampear telefones suspeitos, o sistema mais usado no país é o Guardião, desenvolvido em parceria por técnicos da Polícia Federal e pela empresa de telecomunicações Dígitro. O diretor da área de segurança pública da empresa, Roberto Prudêncio, diz que o Guardião é um programa de computador capaz de gravar conversas telefônicas e identificar vozes. Ele permite cruzar ligações entre as mesmas pessoas, facilitando a análise das informações.
Quando um telefone está sendo monitorado, são gravados os dados e conversas de ligações feitas dele e para ele, diz Prudêncio. Com o sucesso do Guardião, o faturamento da Dígitro cresce em média 30% ao ano. Até a Procuradoria-Geral da República, que por lei não tem o direito de grampear ninguém, comprou o sistema, em 2004, por R$ 732 mil. O motivo da compra, na gestão do ex-procurador-geral Claudio Fontelles, seria ajudar nas investigações sobre o uso indevido das contas bancárias CC5, que permitem remessa de dinheiro para o exterior. O atual procurador-geral da s República, Antônio Fernando de Souza, diz que pretende doá-lo à Polícia Federal.
No passado, os agentes públicos que faziam escutas eram conhecidos como arapongas. O termo saiu de moda, a prática não. Tanto que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) quer readquirir o direito legal de grampear. A idéia é defendida pelo novo diretor-geral do órgão, Paulo Lacerda, que chefiou a Polícia Federal nos últimos quatro anos. Para que a agência recupere o direito ao grampo é preciso mexer na Constituição. Além disso, a proposta precisa receber a aprovação do presidente Lula.
Por enquanto, o governo está disposto apenas a endurecer a atual lei de interceptação telefônica. A escuta é um instrumento muito útil, mas também invasivo, diz Pedro Abramovay, secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça. O grupo de trabalho criado pelo Ministério deve apresentar uma lista de crimes para os quais a interceptação poderá ser utilizada. A punição para os vazamentos também deverá aumentar. Hoje, as penas vão de dois a quatro anos de prisão. Mas raramente os culpados são punidos
Fonte: Consultor Jurídico
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